
Após muito tempo sem postar, resolvi compartilhar minha experiência recente com mais um álbum marcante da carreira de Djavan. Calhou de eu estar, nas últimas semanas, ouvindo as faixas deste álbum repetidamente - o que ajuda muito a formar uma imagem mais nítida do conceito e "corpo" da obra. Inspirado, estou de volta para descrever minhas percepções.
Contando com 11 faixas, sendo duas frutos de parceiras espetaculares com Lulu Santos (Sílaba) e Cássia Eller (faixa homônima), Milagreiro é uma obra coesa, porém difícil de definir. Há uma infinidade de referências costuradas de formas um tanto obscuras, bem como arranjos diferentes de tudo que Djavan já fez, indicando que o álbum é um apanhado de experimentações e sonoridades. Eu enxergo Milagreiro como o mais impessoal da carreira de Djavan, por questões puramente subjetivas. Não há nada ali que nos diga com clareza o conceito pessoal que amarra aquela infinitude de peças que, de algum modo, fazem sentido apenas juntas. Livre dos exageros e complexidades de um dos seus antecessores, Malásia (1998), e flertando com novos ambientes, Milagreiro surge como um ponto fora da curva na carreira do artista alagoano e inaugura uma fase relativamente longa - que dura até Matizes (2007) - na qual as experimentações serão a tônica do seu trabalho. Seja através de arranjos repletos de guitarras distorcidas (Ladeirinha), percussão sofisticada, ainda que clean (Infinitude) ou uma pincelada em sintetizadores (Lugar Comum), diversos são os momentos em que Djavan brinca com novidades. Até mesmo temáticas anteriormente pouco exploradas como filosofia (Infinitude) e amizade (Sílaba) trazem um interessante frescor ao ouvinte contumaz. A impressão de impessoalidade do disco talvez seja porque os temas e arranjos trazidos parecem alienígenas para quem está (mal) acostumado com o modus operandi de Djavan. Ainda assim, há faixas para os gostos mais clássicos que dão pouco ou nenhum espaço pra experimentos, como Além de amar, Cair em si e Brilho da noite. Entretanto, mesmo nessas canções há uma novidade: a harmonia cíclica. Artifício pouco explorado pelo alagoano, a regularidade dos acordes e notas parece que é o mais em comum entre todas as faixas. Versos que se repetem junto a poucos acordes fazem as melodias grudarem mais facilmente no ouvido. Um provável exercício do artista para tornar seu som mais pop e acessível.
1. Farinha: A primeira faixa é uma gostosa mistura do xote com a guitarra, um conceito que ainda que não seja nenhuma novidade na MPB, nem em sua obra (Vide o solo de Maçã do Rosto), tem suas nuances próprias. A principal é a presença da guitarra aqui basicamente substituindo o violão por inteiro. Isso contribui para que a música tenha uma natureza híbrida entre os clássicos, mas seja facilmente identificável numa amostragem às cegas como pertencente a Milagreiro. Sem contar na estranha temática da letra: uma homenagem à cultura nordestina do consumo da farinha e da euforbiácea macaxeira.
2. Om: Este belo soul se apoia nos graves para manter o clima de confissão que a letra transmite. A guitarra onipresente do filho Max Viana é essencial para que a intimidade da faixa se mantenha durante deliciosos 4:28 minutos, principalmente nos suspiros instrumentais floreados pelo arranjo "modernoso" do teclado. A letra literalmente romântica tem algumas pistas de sua real intenção: "Sou instável como a cidade", "você que nasceu com a beira pro rio", me soa como uma homenagem subjetiva à Maceió, cidade natal do cantor, visto que várias faixas aparentam ter uma lírica nostálgica. Porém, esta é minha interpretação apenas.
3. Meu: Outra música que acredito homenagear um ser não-vivo. "Meu" e "Ô louco" dão as dicas - fica com você a interpretação do que ele está homenageando (mas de repente pode ser a esposa mesmo, eu sinceramente não sei). É uma bela música com alguns pontos interessantes: os pratos no meio da canção, a guitarra saltitante, as maracas compassadas e o piano que criam algo como um Malásia pós-coito: Satisfeito, tranquilo, latino e levemente complexo.
4. Ladeirinha: A partir daqui, Djavan se arrisca mais e nos entrega obras singulares que certamente figuram no topo do coração dos fãs. Esta valsa começa simples, como se assistíssemos ao lado de Djavan o nascer do sol num jardim à penumbra. A letra toda é imagética sendo impossível não visualizar as sensações nostálgicas que o artista pretendeu. Porém, quando as primeiras batidas da bateria do filho João Viana começam, a música rapidamente se transforma. O que vemos a partir de então são apenas as distorções na guitarra de Max acompanhadas do incessante ostinato do prato de condução. A confluência de ambos os arranjos ajuda a criar um climax e entregar uma conclusão harmônica delicada como a própria letra. Sem dúvidas uma das melhores do álbum.
5. Infinitude: Outra experimentação sem referências muito claras, porém que cumpre o que intende. O ouvinte percebe de supetão que há algo de indígena em alguns termos, mas o arranjo peculiar faz com esta primeira impressão transcenda ao decorrer da canção. Logo após os primeiros minutos, o arranjo adquire cores completamente estranhas, embora acolhedoras, principalmente em seguida à entrada da percussão "infinita" e o destaque dado à guitarra distorcida na harmonia. A letra é um espetáculo à parte. Aqui Djavan fala sobre um conceito amplo de Amor e brinca com a filosofia nietzschiana nos pondo de frente com nossa moral e visões egoicas. O resultado é uma agradável e inusitada canção entregue para que qualquer ser humano, apaixonado ou não, suspire.
6. Milagreiro: Faixa-título, Milagreiro é outra experimentação, porém que mistura referências mais claras: Religiosidade, traição e solidão, temas profundos e complexos, explorados novamente (p.ex. Lambada de Serpente) agora sob uma nova ótica. O arranjo é formado por poucos instrumentos, porém muito bem aproveitados através de diversas frases melódicas moldadas pelo violão. Cássia Eller segura as pontas agudas da canção e funciona como um contra-ponto feminino às notas altíssimas que Djavan só consegue alcançar no falsete. A complexidade é tamanha que a letra se repete para simplificar a absorção pelo ouvinte, o que realmente acaba funcionando visto que a música estourou nas rádios na época. Difícil imaginar um tango tão sofisticado fazendo o mesmo sucesso hoje em dia - tenho minhas convicções que não - mas é indubitável que a presença de Cássia Eller alavancou muito a popularidade da canção.
7. Brilho da Noite: Este jazz se apresenta como clássico logo nos primeiros minutos. Djavan sempre fez muito bem black music americana, abrasilerou várias, latinizou muitas. Porém, desta vez, resolveu não mexer no gênero. Djavan, em Brilho da Noite, nos entrega o jazz mais puro possível, aproveitando o filho Max para explorar a guitarra através de um grande ostinato que dura quase toda a música. A assimilação de gêneros sofisticados pelo ouvinte médio nunca foi tão fácil como em Brilho da Noite - uma tendência que será repetida mais à frente em Cair em si.
8. Além de Amar: Uma balada romântica sem muitas novidades musicais. Reciclagem de outros álbuns (Seduzir, Luz e Djavan 1989), Além de Amar é um respiro após um mergulho profundo em experimentações, visto que é inegável a zona de conforto em que Djavan se põe nesta canção.
9. Lugar-Comum: Faixa-irmã do trabalho produzido no disco anterior, Bicho Solto (1998), a novidade fica por conta do uso de sintetizadores no arranjo e a harmonia cíclica pop. Como se Djavan estivesse novamente tentando se comunicar com o grande público, principalmente os mais jovens. Isso parece bem claro na temática da letra: um ode ao submundo das casas noturnas e da pegação ("E essa mulher, pura chave de cadeia, o que quer o que faz na minha teia?").
10. Sílaba: Parceria com Lulu Santos, Sílaba parece ser um mais-do-mesmo da black music que Djavan tem produzido nos últimos álbuns. Entretanto, aqui, o diabo mora dos detalhes. São diversas as minúcias que tornam esta canção única: A guitarra cíclica que cria uma harmonia "pingada" durante a introdução, o nostálgico sintetizador anos 1980, as percussões pontuais com sons eletrônicos, a mudança rítmica brusca fragmentando a música em três partes bem nítidas. Sem contar na temática sobre amizade e suas responsabilidades afetivas. Uma das maiores pérolas subestimadas do álbum.
11. Cair em si: Candidata forte à melhor canção do álbum com conta de sua dupla natureza, Cair em si ganhou até clipe, mas não teve a mesma notoriedade de Milagreiro. A letra versa sobre o ato de se apaixonar visto sempre de uma forma peculiar ("Se terei sono tranquilo ou vida sobressaltada, não sei nada"). A canção tem várias camadas na progressão harmônica e nos arranjos, porém se mantém extremamente simples melodicamente - outra vez lançando mão da complexidade controlada. Deste modo, Djavan fecha com chave de ouro este álbum que soa "impessoal" e, ao mesmo tempo, paradoxalmente íntimo, aconchegante. Aqueles típicos álbuns que a gente quer morar dentro, como se ali existisse um universo próprio, particular, regido a partir das próprias regras. Um álbum complexo sim, porém de fácil impregnação nos ouvidos de qualquer um.
Amando seus textos sobre o mestre Djavan!
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