Postagens populares

quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

Homenagem musical: Djavan - Alumbramento (1980)

CONTINUANDO A SEÇÃO DE POSTS EM HOMENAGEM AOS 66 ANOS DE DJAVAN

A análise da postagem de hoje refere-se ao terceiro álbum da carreira do mestre: Alumbramento, de 1980. Diferentemente dos dois discos anteriores, A Voz, O Violão, A Música de Djavan (1976) e Djavan ou Cara de Índio (1979), Alumbramento é todo envolvido numa aura ora de melancolia, ora de um lirismo psicodélico beirando o absurdo. Embora o álbum anterior possuísse faixas mais angustiantes como Álibi (sucesso na voz de Maria Bethânia) e Dupla Traição (regravada por Nana Caymmi), é em Alumbramento que somos verdadeiramente mergulhados no Djavan conhecido pela sonoridade desconcertante criada entre a dramaticidade de interpretação, a letra e o arranjo sublime.
Saindo da zona de conforto proporcionada pelo repertório regional em Cara de Índio (1979) e samba-bossa de A Voz, O Violão, A Música de Djavan (1976), o álbum de 1980 reflete um compositor internalizado em suas emoções e que, de repente, explode em canções repletas de angústia e dor, apenas quebradas por duas faixas completamente díspares. A característica mais crucial deste disco são parcerias: das dez faixas, apenas quatro são composições exclusivas de Djavan. O destaque das parcerias torna o disco único e emblemático, embora seja um dos álbuns mais "lado B" da carreira do alagoano.

1. Tem Boi Na Linha: O disco inicia agitado com este frenético samba carregado no baixo, bumbo e tom-tom, enfeitado com fios de trompete. Não é exatamente uma faixa que se afasta de Cara de Índio, remetendo quase imediatamente a Samba Dobrado e Serrado do álbum anterior. Isso demonstra que, pelo menos instrumentalmente, Djavan não pretende chocar o ouvinte de imediato. O que ocorre é que o lirismo impregna os ouvidos e é quase impossível não perceber que nada na letra faz sentido; exceto se os ouvintes forem cariocas ou fluminenses. É porque a faixa se referencia às diversas estações de trem que ligam bairros do município do Rio de Janeiro a outros municípios: Japeri, Honório Gurgel, Turiaçú, Cordovil, Anchieta, Vigário Geral, Santa Cruz, Zumbi e Todos os Santos, além de outras referências ao sistema ferroviário como os trens Vera Cruz. Tudo isso se interliga de forma quase absurda, embora o efeito da visão do todo faça sentido, característica típica do estilo de Djavan a partir deste álbum. A música é parceria de Djavan com Aldir Blanc e Paulo Emílio.

2.  Sim Ou Não: Um bolero compassado, a voz carregada de melancolia, o piano aparentemente desligado das notas vocais de Djavan, um sopro repleto de tristeza. Tudo converge para uma das faixas mais depressivas do disco. A letra é simples e trata da dificuldade do eu-lírico em se desvencilhar de um amor fracassado e dar continuidade a outro relacionamento. A harmonia encadeia-se de modo complexo, porém, como sempre, Djavan consegue tornar a melodia acessível, tornando Sim Ou Não uma canção de identificação sentimental a qualquer um coração partido.

3.  Lambada de Serpente: Parceria com Cacaso, a faixa inicia-se de maneira bastante incomum: vozes de algumas pessoas ao fundo aparentemente comentando sobre algo dá lugar ao violão tristonho que procurar imitar em acordes o estilo da viola caipira. Vozes inicialmente femininas entoam a harmonia vocal das estrofes iniciais e acompanham Djavan após o sofrido refrão "Lambada de serpente, a traição me enfeitiçou. Quem já teve amor ausente entende minha dor". Embora o nome da canção se refira à Lambada, ritmo paraense dançante, vemos na força resultante de letra, arranjos e harmonia, algo semelhante ao Lundu Marajoara, dança sensual típica da Ilha do Marajó, principalmente no ritmo do violão e voz cantada. A canção aprofunda o ouvinte no ambiente de melancolia e arrependimento do álbum sem exageros de nenhum modo.

4. A Rosa: Primeira composição de Chico Buarque do álbum, a canção é interpretada por ambos de forma alternada na introdução "lara leiê" e, em seguida, maestralmente nos versos seguintes deste maravilhoso e típico samba carioca. A letra, como esperado para um composição de Chico Buarque, é perfeitamente metrificada e interpretativa, emprestando à música um colorido lírico em rimas divertidas e, ao mesmo tempo, geniais. A harmonia é a mesma em várias estrofes subsequentes enfatizando a característica ambígua entre a inocência e a ironia do eu-lírico. Sem dúvida, uma das melhores faixas do álbum.

5. Dor e Prata: Novamente, voltando ao ambiente taciturno do álbum, Dor e Prata é inexplicável. A faixa apresenta um nível de complexidade superior e cria em quem a escuta os ouvidos e o clima para virar o disco para o lado B no qual se deparará com a melhor e mais melancólica faixa do disco, Meu Bem Querer. Os sopros metálicos, o piano saltitante, a voz filtrada de Djavan, a flauta em agudos vibrantes e o ganzá incansável criam uma atmosfera de isolamento e frio inesperada e quase palpável. O lirismo joga ouvinte num aprofundamento filosófico "crescer é como trair, de repente amanhecer já na hora de partir para vida" quebrado pela próxima conclusão particular "viver é mais que crescer, é querer achar o fim do saber, da lei da vida, do nada, de tudo, de si". Conclui-se que a faixa é sobre uma internalização sobre as próprias questões da vida.

6. Meu Bem Querer: Sopros e flautas iniciam a música acompanhados de um piano que despeja vinte segundos de notas em tempos cada vez menos espaçados até chegar a um clímax que nos remete a introdução de uma peça clássica. O clímax então é cortado pela modernidade da guitarra e a rítmica rápida e linear do prato. Assim começa a melhor faixa do álbum, Meu Bem Querer, imortalizado em "Coração Alado", telenovela de Janete Clair exibida pela Globo. Meu Bem Querer é uma faixa completa: arranjo perfeito, harmonia genial, voz afinada e letra perfeitamente encaixada com a proposta melódica. A dramaticidade carregada nos versos ecoa de forma potente por toda a canção. O refrão, que dura mais que as estrofes iniciais, praticamente silencia a instrumentação após a passagem do violino, soerguendo a voz de Djavan em um clímax que emociona musicalmente até os mais frios.

7. Aquele Um: Uma das faixas mais geniais do álbum é resultado da parceria com Aldir Blanc. A despeito da letra que é bem simples e cômica sobre um "santo que baixou em mesa de bar", a canção figura entre as mais complicadas para um intérprete. A rítmica da lírica é o ponto chave da música e um dos seus pontos mais incontornáveis. O "tchu-bi-tchubi-tchu" está lá harmonizando a voz que repete "zarakiê, zarakiê, zoro quê, zarakiê zô roquê, zarakê zô" acompanhada por um sintetizador ansioso e um sopro que solta um encadeamento de notas complexas de modo incansável. Se tudo isso já não é suficiente para figurar este samba entre as faixas mais inventivas do álbum, eu não sei o que vai convencer você.

8. Alumbramento: A faixa-título, parceria com Chico Buarque, mistura a poesia e a rima de Chico com o lirismo alucinógeno de Djavan. A canção é mais uma viga que sustenta o cúpula de melancolia do álbum, assemelhando-se a Meu Bem Querer através da introdução preparatória ao clima triste seguinte. A faixa não é de simples interpretação. O arcabouço de uma harmonia complexíssima e do arranjo apoiado num pianíssimo loucamente deslizante e num baixo épico forma uma das faixas de mais difícil deglutição auditiva. Entretanto, a genialidade da rima lírica garante um acompanhamento quase intuitivo das notas mais difíceis. Um momento de destaque é a terceira estrofe na qual tudo muda de rumo: De repente, o piano tecla de forma um pouco mais acomodada, as cordas ao fundo entrelaçam notas desconexas, embora sinérgicas, que finalmente confluem com intensidade, empurrando o ouvinte novamente no ambiente inicial. O final inesperado com o arranjo vocal de Djavan cria também espaço para uma bateria, um piano e uma pegada de violão mais soul, entregando ao ouvinte uma faixa quase antropofágica que, ironicamente, não torna possível identificar com clareza o elemento musical que a torna tão brasileira.

9. Triste Baía de Guanabara: Como é comum nos discos de Djavan, as últimas faixas são as que verdadeiramente lançam novos conceitos. Composição de Novelli e Cacaso, a seresta reúne os elementos instrumentais e de percussão de todas as faixas melancólicas do álbum como se estivesse tentando criar um resumo de tudo o que disco mostrou nos últimos minutos.  A letra é uma triste confissão à "minha santa idolatrada" que "não fazia quase nada pela minha fidelidade", embora "só pra você eu entreguei sem recusar meu coração". Repleto de angústia, Djavan passeia por uma melodia linear que se repete diversas vezes até finalmente reencontrar o verso inicial, concluindo a canção, como se ela estivesse andando com ouvinte em círculos e entregando uma canção fisicamente sensível.

10. Sururu de Capote: A última faixa é marcada pelo regionalismo, destacado pelos versos "sururu na casca é capote no Nordeste" e "Em São Paulo é bom, mas como lá eu não digo". Logo de início, o ouvinte sente-se adentrando em um terreno estranho que se torna cada vez mais peculiar, instável e até mesmo um pouco lisérgico. Quando o refrão finalmente inicia, o ouvinte é arremessado num ambiente fervente onde um pandeiro agitado, um piano tímido, uma guitarra alterada e um sopro marcado adentram os tímpanos como se estivessem vivos. Quando a música termina, o ouvinte sai sem saber o tipo de música que acabou de ouvir. Pois, bem, eu digo: você acabou de sair de dentro do mundo inventivo de Djavan onde estilos musicais são meras formalidades.

Aqui concluo a pequena análise do complexo álbum Alumbramento. Na próxima postagem, vamos acompanhar um dos álbuns mais "colcha de retalhos" da sua carreira e que criou o primeiro vínculo de Djavan com a música africana e onde ele se lançou a novas experimentações de arranjos inusitados para época, Seduzir (1981).

Se curtiu, curta ;D

2 comentários: