"O pouco que aprendi está aqui. Pleno. Dos pés à cabeça".
A frase presente no encarte do álbum é um esclarecimento. Quando, em 1981, se punha este disco para rodar na vitrola, o ouvinte era então convidado a passar por uma obra heterogênea por excelência. Seduzir é a própria imagem de tudo que foi produzido por Djavan nos últimos anos e o espelho do estilo inegavelmente inventivo do compositor.
Continuando as análises de álbuns em homenagem aos 66 anos do mestre Djavan, a postagem de hoje é sobre uma obra que pode ser utilizada sem culpa como uma referência de quem foi Djavan desde o seu lançamento pela EMI-Odeon em 1975. Adotando uma linguagem verdadeiramente "MPB", neste álbum Djavan sonoriza o Brasil da época, como se ele se esforçasse em criar um ponto de equilíbrio entre tudo o que estava sendo produzido pelos seus contemporâneos. O álbum é uma tessitura complexa de interligações inusitadas e que provoca no ouvinte um clima de instabilidade e incertezas. A ansiedade de não se saber do que trata a próxima faixa é o maior charme da obra. Seduzir foi o último disco produzido pela gravadora com a qual Djavan entrou no mundo da música comercial, a EMI-Odeon, e que fecha a primeira fase da carreira musical do alagoano. Vamos andar e voar para ver o mundo sonoramente mesclado de Seduzir?1. Pedro Brasil: A faixa de abertura inicia-se de forma semelhante a um prólogo de peça de música clássica que aos poucos vai sendo "degradado" pelo som e pelas batidas profanas do violão de Djavan e do baixo de Sizão. Assim, tem início a ufanista e irônica "Pedro Brasil", uma homenagem ao nome Pedro: Um nome comum, porém possuidor de um forte peso histórico "Quem descobriu o Brasil foi Pedro, quem libertou o Brasil foi Pedro, quem construiu o Brasil foi Pedro". Com uma pegada indefinida entre samba e jazz, a faixa é uma reeleitura dos clássicos do primeiro disco. Diferentemente de Flor de Lis e Fato Consumado, Pedro Brasil possui na lírica um jogo de palavras histórico e social. Com uma temática tão diferente de todas que já abordou, Djavan já vai dando seu recado sobre o álbum: não vai ser um mera dejá vù dos anteriores.
2. Seduzir: Envolvido por um ambiente volumoso, um piano solitário vai soltando uma progressão de notas e acordes próprios da soul music, no melhor estilo Stevie Wonder. Assim, começa a segunda faixa, que dá nome ao álbum, e que é, sem dúvidas, uma das canções mais conhecidas deste trabalho, junto de Faltando Um Pedaço. A voz de Djavan, fazendo praticamente a linha do saxofone, puxa o piano através de suas notas de uma maneira provavelmente nunca antes explorada na MPB. O refrão adiciona palmas ao arranjo simples da canção entregando ao ouvinte uma faixa tipicamente pop norte-americana... Só que em português. Dessa forma, nós temos em Djavan o soul abrasileirado mostrando as caras pela primeira vez - de muitíssimas outras - e cujo formato se tornará o estilo favorito do artista no próximo álbum, Luz.
3. Morena de Endoidecer: Resultado da parceria com Cacaso, Morena de Endoidecer é uma pedra preciosa do disco. Complexa, melancólica, envolvente, a faixa se aparenta a uma Incelênça (um tipo de cantiga sertaneja muito comum nas canções de Dominguinhos e Elomar Mello) arranjada num ambiente silencioso, pronto para receber a voz de Djavan como principal instrumento. Composta para ser interpretada de modo dramático, a canção é uma mistura entre as faixas mais tristes de Alumbramento. Destaca-se o momento próximo ao final no qual o violão abafado se encontra com violinos e o violoncelo à la Meu Bem Querer, trazendo uma nova atmosfera à música e tornando-a ainda mais lúgubre sem em momento nenhum permitir exageros.
4. Jogral: Uma faixa autobiográfica, samba jazzístico... É impossível não se lembrar do primeiro álbum ao escutar Jogral. Porém, logo no primeiros momentos, o ouvinte sente algo diferente. Não é impressão: a canção é um desafio harmônico criado por Djavan. Compassos difíceis, notas saltitantes, progressões geniais. Tudo isso embalado por um violão valentão embrulhado numa batida extremamente sacudida acompanhada por uma linha de baixo enlouquecida. Tudo isso para demonstrar o trabalho e o potencial gigantesco da excelente banda Sururu de Capote, surgida na época para acompanhar Djavan em suas turnês.
5. A Ilha: Criada a partir de uma sensibilidade lírica absurda, A Ilha é uma das melhores faixas do álbum. A sensação que se tem é que canção vai levando o ouvinte numa barca construída pela percussão hipnótica, o baixo tenaz, o piano dissonante e a voz sossegada de Djavan. A partir do refrão, a música se torna outra: o sopro toma conta de tudo de forma que o ouvinte começa a ser levado aceleradamente para fora de sua rota em um redemoinho até que finalmente para, atirando-lhe a uma enorme distância de onde estava para lhe por novamente dentro do refrão confessional. Quando o refrão acaba novamente, surge a voz instrumental de Djavan que, por fim, cria a incerteza do que ocorreu durante a música e do que acontecerá a seguir no lado B do disco.
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Filipe Mukenga |
6. Faltando Um Pedaço: No Lado B, dá as caras o Djavan conceitual que mescla os pedaços infinitesimais e aparentemente desconexos da música popular brasileira. E é em Faltando Um Pedaço que temos isso da forma mais puramente intencional. A introdução é um violão acelerado que arremessa notas oriundas de uma escala tipicamente nordestina e que, ao findar, nos traz uma batida mais acomodada que corta completamente a expectativa do ouvinte ao originar mais um ambiente de incerteza. No lugar, surge a voz instrumental de Djavan acompanhando a harmonia do violão e as notas de um piano deslizante angustiado através de agudos. Logo depois, a canção propriamente dita inicia-se através de uma batida compassada apoiada em acordes complicados. A lírica é composta de versos visuais que descrevem o sentimento do amor: "o amor é como laço, um passo pruma armadilha, um lobo correndo em círculos pra alimentar a matilha". Terminada a primeira parte, o ouvinte novamente é golpeado pela melodia de agudos da voz de Djavan, desta vez instrumentalizada por um saxofone. O ouvinte, então, é encaminhado novamente ao violão compassado e sustentado pelos mesmo acordes. Desta vez, a introdução não reaparece, e sim uma bela instrumentalização orquestrada que então dá lugar ao piano e o violão novamente, desta vez em solo. Logo em seguida, a melodia reaparece mais uma vez com seu violão compassado que finalmente nos entrega a conclusão extremamente bela e sensível da faixa. O ouvinte a essa altura já percebe que o refrão simplesmente não existe e que está de cara simplesmente com a melhor faixa do disco. E com uma das mais belas e inventivas obras feitas na história da MPB.
7. Êxtase: Iniciando com um baixo empolgado, o ouvinte desta vez é levado mais profundamente para dentro do mundo estranho de Djavan. A excentricidade da faixa vai muito além da lírica lisérgica repleta de referências desconexas à vida carioca (Santa Teresa, São Sebastião, Vasco, Rua da Passagem, Baixada Fluminense), mas também se estende a forma em que a harmonia e o arranjo é processado. A harmonia é um samba completamente diferente do que era feito na época, com referências à soul music. O arranjo se destaca pelo bom trabalho da banda Sururu de Capote, principalmente do baixista Sizão Machado, como em Jogral, tornando esta mais uma música desafiante do disco. Destaque ao triângulo errante que entra somente durante o arranjo da parte mais louca do samba "O cordeiro de Deus, o bode expiatório, a testemunha ocular que não tem nada a ver".
8. Luanda: Na década de 80, Djavan visitou Angola e trouxe para o brasil diversas referências conceituais. Luanda é a faixa mais distante do disco, tanto em termos conceituais, quanto harmônicos, de arranjo e inclusive fisicamente. Estranha do começo ao fim e repleta de pontos de referência completamente desconhecidos aos ouvidos brasileiros, a faixa se mostra como a mais difícil de digerir. Não no sentido "intragável", mas sim difícil a sua compreensão e seu conforto ao ouvido tupiniquim. Abrindo-se como uma flor exótica em meio à policultura do álbum, Luanda é experimental até osso e fez que muitos puristas torcessem o nariz a princípio. Estéticas à parte, pessoalmente considero Luanda uma das mais excêntricas e, portanto, mais geniais composições do álbum.
9. Total Abandono: Rodeado por uma conceituação harmônica de um samba-corrido compassado, essa faixa possui algumas características de arranjo que a diferenciam do samba propriamente dito: A bateria sobressalente e o sopro grave em praticamente toda a música. Rica em sopros agudos, típicos do samba de partido alto, a canção é a que mais se distancia da inventividade conceitual do álbum, deixando o ouvinte com a sensação de estar visitando uma composição de Paulinho da Viola, uma grande influência de Djavan.
10. Nvula Ieza Kia/Humbiumbi: Somos novamente convidados a entrar no estranho mundo da música da África Subsaariana, porém, desta vez temos um convidado especial: Gilberto Gil. Nvula Ieza Kia é uma composição do angolano Filipe Mukenga, interpretada pelos dois brasileiros através de um fantástico arranjo afro-caribenho. Mais "digerível" que Luanda, Nvula Ieza Kia leva o ouvinte a um colorido e quente ambiente rítmico no qual a percussão é a rainha. Quando se chega em Humbiumbi, o ambiente muda. Somos envolvidos por um piano simples e uma percussão que se resume a alguns tambores tribais lentamente organizados. A última faixa entrega ao ouvinte uma incerteza maior quando inicia a bateria e o saxofone em meio às vozes eriçadas de Djavan e Gil em fonemas incompreensíveis. A faixa acaba fechando assim um dos discos mais imprevisíveis e heterogêneos de Djavan até o momento.
Seduzir foi uma pequena amostra do que viria a seguir em 1982/1983 com Luz, o álbum com maior número de hits do cantor. Teremos a aura do pop black norte-americano e a psicodelia instrumental sensível a níveis extremos na próxima postagem.
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