Ah... Sim. É porque é o Luz...
Produzido debaixo das asas gigantescas da Sony Music e tendo Ronnie Foster como produtor, Luz não é nada parecido com os quatro álbuns anteriores produzidos pela EMI-Odeon. Em Luz, Djavan mostra uma faceta que ficara escondida durante quase todo o tempo em que esteve na EMI: o poeta psicodélico. Despontando de forma tímida em algumas canções como Alumbramento e Êxtase, o excêntrico Djavan psicodélico começa sua transformação, ainda que a princípio, amorfo. Esse Djavan cresce durante todo o álbum, sem fazer concessões, tomando sua forma definitiva em Lilás, álbum sucessor.
Longe de ser esforçado para agradar ouvidos educados, é em Luz que temos o Djavan mais autêntico até então. Talvez seja por esta forte característica que Luz seja a fonte dos maiores sucessos da carreira do artista. Faixas como Capim, Sina, Samurai, Pétala e Açaí são exemplos disso. Vamos conhecer esta nova criatura que está nascendo da luz?
1. Samurai: "Samurai é uma faixa nitidamente pop". A frase anterior é óbvia para qualquer um que cresceu ouvindo Samurai das mais diversas formas e versões. Famosa pelo "aaaaai" em cada frase, Samurai é uma faixa fonemática e concretista por natureza, dispensando um lirismo clássico. Parceria de Djavan com nada menos que Stevie Wonder, Samurai é um exemplo denso do que o alagoano é capaz com a sonoridade do português brasileiro a partir de uma música elaborada sobretudo para o soul-jazz norte-americano. Uma abre-alas perfeito para um disco que promete nada mesmo que a transformação total da sensibilidade musical do seu ouvinte.
2. Luz: O estranho swing funk sambístico carrega a aura psicodélica do disco. Porta-bandeira de um experimentalismo instrumental e harmônico extremos de sua carreira, Luz segue o conceito de canção-pintura: Pincela alguns tons, joga mais uns tons em cima, cria um ambiente harmônico de fundo, tudo isso com uma tinta lírica alucinógena que parece vir de um quadro meio surrealista, meio impressionista. Luz é uma faixa semelhante a um quadro de Monet: de perto, ela pode não fazer muito sentido e parecer até mesmo esteticamente arrepiante; porém, de longe, olhando o todo você enxerga a beleza da obra. Merece o destaque em ser a faixa-título do álbum por carregar em si a conceitualização do neo-djavan antropofagista da black music norte-americana que firmou a personalidade musical do artista até os dias de hoje.
3. Nobreza: A música dista do conceito pontual da black music do disco expresso nas últimas duas faixas, porém entrega o ouro na lírica inusitada, outra característica deste álbum. A canção parece se tratar a princípio de uma amizade entre um homem e uma mulher, provavelmente se transformando em um grande amor, tamanha a quantidade de referência doces e românticas. Porém, o verso mais próximo ao final revela do que realmente se trata: "uma grande amizade é assim: dois homens apaixonados". A temática, para a época, embora não possua exatamente teor homossexual, era bastante liberal. Se os discos anteriores estavam voltados a um público conservador e possuíam pontuais "rebeldias", em Luz cada faixa é um afronta estética. Nobreza foi uma das homenagens à Caetano presentes no disco.
4. Capim: Outra afronta estética. O belo samba-jazzístico repleto de saxs e trompas, convida o ouvinte a adentrar em mais um quadro impressionista. Montado em cima de um arranjo moderno, se comparado aos sambas-jazzy dos primeiros discos - principalmente no que diz respeito ao solo final produzido no sintetizador - a lírica é a chave da estética aberrante. Completamente visual, a letra explora espécies vegetais, animais e regiões brasileiras de forma - aparentemente - sonora. Capim, mais intensamente que em Luz, monta cada jogo de palavras com um intuito puramente estético e não se preocupa em se fazer entender nos detalhes. Conceito usado e abusado neste e nos vindouros álbuns.
5. Sina: Se em Capim a estética lírica surrealista-impressionista foi a base de toda obra, em Sina o conceito é arregaçado sem piedade. Faixa das mais famosas do artista e outra homenagem à Caetano ("como querer caetanear o que há de bom"), Sina envolve lentamente o ouvinte com um misto de música nordestina, soul e ritmos caribenhos sem se prestar a explicar nada. Desta vez, o jogo de palavras adentra o absurdo, principalmente no espetacular momento em que Djavan instrumentaliza a voz solando "azabatchú", "saraberrabá" e outras palavras incompreensíveis. Todo o arranjo vocal-instrumental permite a experimentação alcançar o ouvinte de forma completamente envolvente, sem estranhezas. Cada fonema soa exatamente como deve soar. Cada som, cada sibilo de "sss", cada nota encaixam-se perfeitamente nesse balaio de gato sonoro. Sina não é um sucesso atemporal de Djavan à toa e não merece menos que o título de melhor canção do álbum.
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Caetano e Djavan na TV Globo em 1983 "Um facho de Luz" |
6. Pétala: Outro grande sucesso de Djavan, Pétala dispensa comentários em demasiado. Baseado no soul arrastado e no R&B, contando com a beleza do harmônico de notas suspensas de Djavan, Pétala possui uma lírica essencialmente psicodélica, invocando imagens e brincando com sons. É uma das faixas mais "comportadas" do álbum, mas nem por isso deixa de ser uma das melhores e mais mágicas composições da carreira do alagoano até hoje.
7. Banho de Rio: Voltando ao surrealismo-impressionista hardcore, Djavan agora explora a cantiga do sertanejo em busca de isolamento e um ambiente soturno. Acompanhado por rabecas e um violão, Djavan expressa uma profunda tristeza através de longas notas finais em cada verso. Criado no mesmo campo harmônico que Nobreza, Banho de Rio é uma derivação bem mais complexa, como se o artista tivesse olhando a base através de outra perspectiva.
8. Açaí: O solo de início escrito com um violão abafado e um piano de base cru remete ao soul. Mas como sabemos que se trata de Djavan em Luz, não será diante da mesma perspectiva. Desta vez, Djavan estica a base harmônica do soul até fagocitá-la em um processo antropofágico incubador do psicodelismo de Açaí. A faixa possui a letra mais surrealista do álbum - abordando diferentes tipos de "sons" - entretanto, curiosamente, este fato não a tornou menos pop. A união entre a sonoridade fonética, a melodia e o arranjo instrumental criou um ambiente propício para que o ouvinte fosse envolvido por um som indígena soulful sem sentir estranheza nenhuma. Pelo contrário: Assim como em Luz, Sina e Capim, o ouvinte é levado ao mundo criado por Djavan de mãos dadas com a estranha entidade musical que ali se apresenta, sem nenhum medo. Mas o que será que significa "açaí guardiã, zum de besouro, um imã, branca é a tez da manhã"? Bem, segundo o próprio Djavan, em entrevista, esses versos aparentemente nonsense têm uma explicação muito "clara" e "lógica". Eu, nortista criado em Belém do Pará, não chegaria à conclusão que ele chegou tão facilmente, mesmo que fosse da Academia Brasileira de Letras. Veja e tire suas próprias conclusões: https://www.youtube.com/watch?v=pFoKjjcLopE.
9. Esfinge: Esfinge é exatamente o que o ser mitológico que dá nome à faixa representa: um mistério assustador. Envolto na aura do R&B, Esfinge entrega ao ouvinte uma faixa sonoramente simples e ao mesmo tempo harmonicamente complexa. O colorido da canção pode ser descrito pelo poder emocional que essa música descarrega desde sua introdução. O arranjo ambiente fica sustentado pelo sintetizador, o saxofone e a guitarra compassados, sendo seguidos pelo refrão instável. Falando nele, poucas músicas conseguem trazer uma ambivalência tão grande em tempos tão próximos de uma canção como esta faz. Trocando em miúdos: Parte do refrão perfaz uma celebração que logo dá lugar à melancolia e, em seguida, aos dois, alternadamente. Não entendeu? Abra seu coração, pois a questão aqui é sentir, não racionalizar.
10. Minha Irmã: A curta Minha Irmã é mais uma pintura surrealista do álbum. Criada em meio a um caótico samba cunhado numa harmonia cíclica e rápida e um arranjo histriônico, Minha Irmã passa tão rápido quanto um bloco de carnaval. Literalmente: a faixa possui um pouco mais de dois minutos e os versos são apenas quatro. O efeito é interessante: os versos, provavelmente monólogos da irmã de Djavan, são interpretados primeiramente num tom baixo, de conselho, quase falados. Em seguida, os mesmo versos são soltos quase aos gritos, dando a entender que o quadro mudou: A chuva acabara de engrossar. Tudo isso em quatro versos. Apenas genial.
Djavan parecia ainda não estar completamente contente com o resultado de Luz. Havia um ponto que precisava ser mais trabalhado de forma a desligar completamente o ouvinte do conteúdo da letra. O próximo trabalho de Djavan é um reflexo de uma evolução do lirismo psicodélico. A próxima postagem será sobre Lilás (1984).
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