Após passarmos pelo dançante e agitado Coisa de Acender, é hora de entrarmos no mundo exótico de Malásia (1996). Desta forma, chegamos ao fim das análises homenageando o nosso grande artista que faz 66 anos no dia de hoje. Coincidência ou não, Malásia é meu álbum favorito da carreira de Djavan.

Saindo um pouco das referências à música latina, Djavan passeia pelo acid jazz e blues, o cancioneiro nordestino, o complexo jazz modal e volta pros ritmos latinos com o samba jazz latino e a rumba. Diversificado como em Coisa de Acender, Djavan desta vez retorna a um mundo interior djavânico e à lírica absurda em várias faixas do disco.
1. Que Foi My Love? - Com um título bastante inusitado, a faixa agarra o ouvinte pelo pescoço e grita "Presta atenção!". Realmente é difícil não ficar atento à lírica e ao arranjo maravilhosos deste blues com elementos de acid jazz. Isso tudo combinado com uma letra bem-humorada e por cômicos comentários de Djavan durante o transcorrer da cena então ilustrada. Leve e divertida, Que Foi My Love? é resultado da experimentação de Djavan ao vivo dentro do estilo da black music reinventada por ele mesmo.
2. Seca: A melancólica faixa seguinte é baseada no estilo de cancioneiro popular sertanejo e nordestino de Dominguinhos assim como em Estória de Cantador de "Djavan" (1979). Acompanhado pelo violão e um triste acordeão durante toda a primeira parte e por um sax barítono no refrão, Seca trata o ouvinte como um ser sensível que entende o sofrimento alheio por meio de palavras e de sons.
3. Nem Um Dia: Famosíssima canção de Djavan e único hit do álbum, Nem Um Dia tem uma estrutura muito diferente de outras soul music abrasileiradas dos outros álbuns, sendo carregado no nível mais baixo do espectro (sons graves) e com a estranha presença de elementos exóticos no arranjo, principalmente as castanholas e um piano de cauda. Existem vários pontos na harmonia que são preenchidos de maneiras pouco usuais, principalmente graças à estrutura lírica altamente conectada com cada som. O destaque maior talvez seja para as linhas melódicas paralelas à principal em várias partes da música.
4. Não Deu... - Este jazz modal faz parte de uma experimentação madura de Djavan com harmonias complexas em Malásia que começa a partir daqui. A lírica de Não Deu... é narrada provavelmente em eu-lírico feminino demonstrada pelo verso "Eu sonhei viver com você assim dedicado a mim, de tudo me proteger pra me ver feliz a te agradar", uma triste reflexão de um tipo de amor maternal não correspondido. Ambientado num clima mais melancólico que em Outono, do álbum anterior, Não Deu... é bem menos minimalista e conta com um arranjo primoroso de piano, sax e cimbal vassourinhado, um ponto-chave que destaca Malásia.
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Paulinho da Viola |
5. Deixa O Sol Sair: A faixa começa com um samba jazz latino agitado que remete a Não É Azul, Mas É Mar (1987) sem reciclar ideias já lançadas no álbum. Harmonicamente bem estruturado e repleto de detalhes minunciosos no arranjo, a faixa é mais um grande tesouro nesses dois principais aspectos de Malásia sem ainda entrar no exotismo de outras faixas do álbum.
6. Tenha Calma: Outra canção com eu-lírico feminino, Tenha Calma é um belo smooth jazz erguido em mais uma complexa harmonia. As linhas melódicas paralelas, marca registrada de todo Malásia e característica de uma musicalidade e composições maduras, tomam conta do ouvinte embalando-o numa teia emocional de reflexões amorosas. Assim como Não Deu..., Tenha Calma é bem pouco minimalista contando com uma variada classe de instrumentos e percussões formando um corpo coeso e coerente. O fim da canção emenda uma composição de Tom Jobim e Vinícius de Moraes, "Sem Você", que possui a mesma estrutura harmônica.
7. Irmã de Neon: A exótica próxima faixa é uma mistura entre a música cubana e o jazz esculpidos sob uma harmonia bastante complexa. Contando com uma lírica abstrata, Irmã de Neon parece não falar nada com nada e que, como foi em Lilás, aparentemente feita para causar efeitos sonoros e melódicos - ainda que façam algum sentido para o próprio compositor. O arranjo conta com os elementos principais da música latina sem descambar numa repetição do que foi lançado no disco anterior, Coisa de Acender.
8. Cordilheira: Outra das faixas exóticas com lírica abstrata do disco, Cordilheira é uma canção estruturada como um bolero esquisito em que a percussão e o arranjo não conseguem apresentar uma forma definitiva. Talvez por ausência de referências eu mesmo não tenho como classificar esta canção em qualquer estilo musical que eu conheça. No fim das contas, o resultado final entrega ao ouvinte uma bela melodia enfeitada por um dos arranjos mais complexos e coloridos do álbum.
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Charles Chaplin |
9. Malásia: A faixa mais difícil e musicalmente complexa do álbum inteiro é como um retrato fiel da obra como um todo nesse quesito. Porém, exótica do início ao fim, Malásia quase choca ao estapear o ouvinte com encadeamentos estranhos, compassos ternários e quaternários compostos na mesma música e referências distantes. A lírica é permanentemente abstrata e assim se torna coerente com o arranjo bizarro da música. Bem provavelmente, Djavan queria passar a ideia de que ele era capaz de produzir um nível ainda mais elevado de experimentalismo. Praticamente como se mensagem da canção fosse: "Eu posso fazer o que eu quiser com a música. Eu sou Djavan".
10. Coração Leviano: Interpretação da canção de Paulinho da Viola e imortalizada por Clara Nunes, Djavan leva o ouvinte para o rico e sofisticado mundo do samba de Paulinho sem fazer alardes conceituais, visto que a parte exótica do álbum termina em Malásia, faixa anterior. Simplesmente maravilhosa.
11. Sorri: Canção original de Charles Chaplin e versão de João de Barro, Sorri é uma bela versão acústica violada.
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Tom Jobim e Vinícius de Moraes |
12. Correnteza: Bela composição de Tom Jobim e Luiz Bonfá, Djavan entrega uma versão próxima ao conceito da música caipira-indígena "classuda" com um arranjo dos mais primorosos e bem-feitos do álbum inteiro.
Bem, após tantas postagens, chega ao fim as análises dos principais discos de Djavan anteriores ao seu primeiro DVD, Djavan Ao Vivo. Espero que eu tenha contribuído pelo menos um pouco com o ouvido de vocês. Comecei a ouvir Djavan quando me apaixonei por seu timbre e suas composições ao assistir Djavan Ao Vivo. Percebi que tinha muito o que aprender em relação a violão. Minha vontade de compor certamente veio de Djavan e a muito tenho a agradecê-lo! Obrigado, Mestre!