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terça-feira, 27 de janeiro de 2015

Homenagem musical: Djavan - Malásia (1996)

Após passarmos pelo dançante e agitado Coisa de Acender, é hora de entrarmos no mundo exótico de Malásia (1996). Desta forma, chegamos ao fim das análises homenageando o nosso grande artista que faz 66 anos no dia de hoje. Coincidência ou não, Malásia é meu álbum favorito da carreira de Djavan.

Ambientado no ambiente mais estranho e incerto desde Meu Lado (1986) e Seduzir (1981), Malásia apresenta sobretudo um Djavan maduro que sabe muito bem onde pisa e arrisca por pura vontade de expandir os limites. A incerteza gerada pelo álbum não é pelas referências múltiplas metralhadas, mas sim a incapacidade do ouvinte de primeira viagem em encontrar um ponto em comum entre elas. Malásia é um grande quebra-cabeças que apresenta o maior número de peças de composições de outros artistas até então: são três no total, número relativamente grande.

Saindo um pouco das referências à música latina, Djavan passeia pelo acid jazz e blues, o cancioneiro nordestino, o complexo jazz modal e volta pros ritmos latinos com o samba jazz latino e a rumba. Diversificado como em Coisa de Acender, Djavan desta vez retorna a um mundo interior djavânico e à lírica absurda em várias faixas do disco.

1. Que Foi My Love? - Com um título bastante inusitado, a faixa agarra o ouvinte pelo pescoço e grita "Presta atenção!". Realmente é difícil não ficar atento à lírica e ao arranjo maravilhosos deste blues com elementos de acid jazz. Isso tudo combinado com uma letra bem-humorada e por cômicos comentários de Djavan durante o transcorrer da cena então ilustrada. Leve e divertida, Que Foi My Love? é resultado da experimentação de Djavan ao vivo dentro do estilo da black music reinventada por ele mesmo.

2. Seca: A melancólica faixa seguinte é baseada no estilo de cancioneiro popular sertanejo e nordestino de Dominguinhos assim como em Estória de Cantador de "Djavan" (1979). Acompanhado pelo violão e um triste acordeão durante toda a primeira parte e por um sax barítono no refrão, Seca trata o ouvinte como um ser sensível que entende o sofrimento alheio por meio de palavras e de sons.

3. Nem Um Dia: Famosíssima canção de Djavan e único hit do álbum, Nem Um Dia tem uma estrutura muito diferente de outras soul music abrasileiradas dos outros álbuns, sendo carregado no nível mais baixo do espectro (sons graves) e com a estranha presença de elementos exóticos no arranjo, principalmente as castanholas e um piano de cauda. Existem vários pontos na harmonia que são preenchidos de maneiras pouco usuais, principalmente graças à estrutura lírica altamente conectada com cada som. O destaque maior talvez seja para as linhas melódicas paralelas à principal em várias partes da música.

4. Não Deu... - Este jazz modal faz parte de uma experimentação madura de Djavan com harmonias complexas em Malásia que começa a partir daqui. A lírica de Não Deu... é narrada provavelmente em eu-lírico feminino demonstrada pelo verso "Eu sonhei viver com você assim dedicado a mim, de tudo me proteger pra me ver feliz a te agradar", uma triste reflexão de um tipo de amor maternal não correspondido. Ambientado num clima mais melancólico que em Outono, do álbum anterior, Não Deu... é bem menos minimalista e conta com um arranjo primoroso de piano, sax e cimbal vassourinhado, um ponto-chave que destaca Malásia.

Paulinho da Viola

5. Deixa O Sol Sair: A faixa começa com um samba jazz latino agitado que remete a Não É Azul, Mas É Mar (1987) sem reciclar ideias já lançadas no álbum. Harmonicamente bem estruturado e repleto de detalhes minunciosos no arranjo, a faixa é mais um grande tesouro nesses dois principais aspectos de Malásia sem ainda entrar no exotismo de outras faixas do álbum.

6. Tenha Calma: Outra canção com eu-lírico feminino, Tenha Calma é um belo smooth jazz erguido em mais uma complexa harmonia. As linhas melódicas paralelas, marca registrada de todo Malásia e característica de uma musicalidade e composições maduras, tomam conta do ouvinte embalando-o numa teia emocional de reflexões amorosas. Assim como Não Deu..., Tenha Calma é bem pouco minimalista contando com uma variada classe de instrumentos e percussões formando um corpo coeso e coerente. O fim da canção emenda uma composição de Tom Jobim e Vinícius de Moraes, "Sem Você", que possui a mesma estrutura harmônica.

7. Irmã de Neon: A exótica próxima faixa é uma mistura entre a música cubana e o jazz esculpidos sob uma harmonia bastante complexa. Contando com uma lírica abstrata, Irmã de Neon parece não falar nada com nada e que, como foi em Lilás, aparentemente feita para causar efeitos sonoros e melódicos - ainda que façam algum sentido para o próprio compositor. O arranjo conta com os elementos principais da música latina sem descambar numa repetição do que foi lançado no disco anterior, Coisa de Acender.

8. Cordilheira: Outra das faixas exóticas com lírica abstrata do disco, Cordilheira é uma canção estruturada como um bolero esquisito em que a percussão e o arranjo não conseguem apresentar uma forma definitiva. Talvez por ausência de referências eu mesmo não tenho como classificar esta canção em qualquer estilo musical que eu conheça. No fim das contas, o resultado final entrega ao ouvinte uma bela melodia enfeitada por um dos arranjos mais complexos e coloridos do álbum.
Charles Chaplin

9. Malásia: A faixa mais difícil e musicalmente complexa do álbum inteiro é como um retrato fiel da obra como um todo nesse quesito. Porém, exótica do início ao fim, Malásia quase choca ao estapear o ouvinte com encadeamentos estranhos, compassos ternários e quaternários compostos na mesma música e referências distantes. A lírica é permanentemente abstrata e assim se torna coerente com o arranjo bizarro da música. Bem provavelmente, Djavan queria passar a ideia de que ele era capaz de produzir um nível ainda mais elevado de experimentalismo. Praticamente como se mensagem da canção fosse: "Eu posso fazer o que eu quiser com a música. Eu sou Djavan".

10. Coração Leviano: Interpretação da canção de Paulinho da Viola e imortalizada por Clara Nunes, Djavan leva o ouvinte para o rico e sofisticado mundo do samba de Paulinho sem fazer alardes conceituais, visto que a parte exótica do álbum termina em Malásia, faixa anterior. Simplesmente maravilhosa.

11. Sorri: Canção original de Charles Chaplin e versão de João de Barro, Sorri é uma bela versão acústica violada.
Tom Jobim e Vinícius de Moraes

12. Correnteza:  Bela composição de Tom Jobim e Luiz Bonfá, Djavan entrega uma versão próxima ao conceito da música caipira-indígena "classuda" com um arranjo dos mais primorosos e bem-feitos do álbum inteiro.

Bem, após tantas postagens, chega ao fim as análises dos principais discos de Djavan anteriores ao seu primeiro DVD, Djavan Ao Vivo. Espero que eu tenha contribuído pelo menos um pouco com o ouvido de vocês. Comecei a ouvir Djavan quando me apaixonei por seu timbre e suas composições ao assistir Djavan Ao Vivo. Percebi que tinha muito o que aprender em relação a violão. Minha vontade de compor certamente veio de Djavan e a muito tenho a agradecê-lo! Obrigado, Mestre!

Homenagem musical: Djavan - Coisa de Acender (1992)

1992, Djavan lança o álbum Coisa de Acender pela Sony Music. A capa já revela a conceitualização que será o disco: De perfil, num ângulo pouco comum sob uma luz forte, demonstrando uma nova ótica do artista. Coisa de Acender foi um álbum impar na carreira do alagoano por dois motivos: O primeiro, mais óbvio, é uma gama de hits, coisa que não acontecia desde Luz, em 1982. O segundo motivo é a estrutura new concept de ligação entre as nove faixas do álbum: a black music latinizada.

Estamos diante de um diversificação de estilos muito grande, porém uma consolidação daquilo que nasceu dez anos atrás em Luz: a suingada black abrasileirada. Coisa de Acender conta com quatro faixas de participações especiais ou composições alheias. Não obstante, o resultado final é um dos mais diversificados discos do Djavan maduro, surgido após o último "Djavan" (1989) ou "Oceano".

1. A Rota do Indivíduo: Composição original de Orlando Morais, A Rota do Indivíduo ou "Ferrugem", é uma daquelas canções que embala de forma arrepiante o coração humano. Fria e ao mesmo tempo aconchegante, a faixa apresenta o minimalismo com um arranjo incorporado apenas por um violão e a voz de Djavan durante praticamente todos os quatro minutos de duração, havendo uma quebra com a introdução do violino posteriormente. A balada sertaneja ganha na voz de Djavan um conceito melancólico, porém extremamente belo, sem cair na dramaticidade de faixas mais brandas de álbuns anteriores e atingindo a medida certa da triste canção sertaneja.

2. Boa Noite: O funk latinizado de Boa Noite é um dos grandes hits radiofônicos da carreira de Djavan. Alicerçado por um lírica profunda sobre a quebra do paradigma do amor idealizado, Djavan provoca nada menos que uma necessidade absurda de ser levado pelo contrabaixo suingado, pela guitarra leve e pelo alto sax apaixonante. Uma prova definitiva de que não apenas Tim Maia e Ed Motta produziam boas canções de black music na época.

3. Se: Outra faixa de black music latinizada e talvez seu maior sucesso até hoje, Se é exaustivamente cantada por inúmeros covers de Djavan em todo o país. Não é por menos: a canção possui uma pegada genial entre as notas e a letra, quase que grudando no cérebro. A lírica não é simples em todos os momentos, mas possui versos completamente voltados ao pop: "Você disse que não sabe se não, mas também não tem certeza que sim", "Você sabe que eu só penso em você, você diz que vive pensando em mim" e até o controverso verso "Mais fácil aprender japonês em braile do que você decidir se dá ou não". Embalado por vozes de fundo tipicas da soul music, Se é um aprimoramento do que foi iniciado em Luz (1982).

4. Linha do Equador: Outro grande sucesso do cantor e compositor alagoano, Linha do Equador é uma parceria com Caetano Veloso, seu grande amigo, mais que demonstrando a ideia de que Coisa de Acender é realmente um acertado resgate de Luz. Porém, Linha do Equador vai bem mais além, deixando de ser apenas um soul suingado para se tornar uma grande sopa de vários sabores, entre eles o samba e o funk. Tratando de um tema latino-americano e, sobretudo, brasileiro, Linha do Equador é uma faixa que traz toda a rítmica lírica da língua latina e se torna um verdadeiro retrato musical da América.

Álbum "A Rota do Indivíduo" de Orlando Morais


5. Violeiros: A partir daqui, Coisa de Acender começa a se tornar mais diversificado e abranger outros ritmos latinos. A faixa Violeiros é um corte brutal na primeira parte do álbum, apresentando ao ouvinte uma outra face de Djavan que havia sido deixada de lado há algum tempo: o nordestino. Violeiros é semelhante a um repente ou cantoria de viola, arte nordestina baseada em versos improvisados acompanhados principalmente por uma viola e/ou acordeão. No caso desta canção, há uma singela mistura do repente com a música africana próximo ao final, nas rítmicas de flauta e nas duras batidas de caixa. Baseada no poema de Manuel Bandeira "Cantadores do Nordeste", Djavan eleva a lírica a outro nível quando mistura a poética original com o estilo "violado" do repente. Simplesmente genial.

6. Andaluz: É interessante como faixas mais lado B de Djavan me conquistam. Talvez por parecerem baús esquecidos, enterrados na praia de uma ilha deserta. É o que ocorre com Andaluz, na minha opinião a melhor faixa do álbum. Andaluz é uma interessante mescla entre a música europeia e a africana, ambientada num mundo lírico confuso, onírico e que praticamente obriga o ouvinte a entregar os ouvidos comportados de uma vez. A introdução de quase um minuto passa a ideia de uma canção embalada e compassada que rapidamente é substituída por outro arranjo completamente distinto do resto do álbum, apoderado pelo piano dissonante. Após o refrão, porém, o arranjo africano surge de supetão, entrelaçado entre palavras sem muita lógica. Porém, outra quebra ocorre em seguida: Versos em francês com um forte sotaque africano, cantados por sua filha Flávia Virgínia, iniciam-se, arremessando o ouvinte contra uma parede repleta de referências desconhecidas pelo ouvido tupiniquim. Sem dúvidas, umas das faixas mais difíceis do álbum e da carreira de Djavan.

7. Outono: A sofisticada faixa seguinte é gerada no interior de um complicado jogo harmônico que há tempos não víamos em Djavan. A lírica abstrata é manejada dentro de uma ambientação do smooth jazz de uma forma ainda não realizada por Djavan em seus discos anteriores. Paradoxalmente, não há uma grande complexidade no que diz respeito ao arranjo, tornando esta mais uma bela canção minimalista do álbum.

8. Alívio: Menos focado no violão, Djavan esbanja ritmo na black music latinizada novamente, assim como fez em Se. O fretless bass de Alívio, parceria de Djavan com Arthur Maia, é um belo detalhe no arranjo da canção e, praticamente, quase toda sua alma junto ao teclado. Embora Alívio seja ambientada num mundo tropical como em Linha do Equador, a faixa é mais interiorizada e prende o ouvinte numa nova perspectiva de sua conceitual black music latina, entregando momentos realmente emocionantes.

9. Baile: A última faixa nasce do mesmo conceito de arranjo lançado em Linha do Equador. A lírica segue um padrão poético básico até chegar próximo ao final no qual Djavan inicia um estranho jogo de palavras aparentemente desconexas e cuja finalização apresenta uma conexão "tudo somos na insanidade exata do amor". Insanidade essa que Djavan retorna de forma triunfal no próximo disco, Malásia.

Então, até Malásia!

segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

Homenagem musical: Djavan - Djavan (Oceano) (1989)

Em 1984, Lilás despontou no mercado fonográfico mundial como um álbum diferente de tudo que Djavan já havia feito até então. Com uma pegada suingada do funk dos anos 80, letras absurdas e uma ambientação expressionista-abstrata, Lilás rendeu críticas, bastante positivas, de todos os lados.

Em seguida, Meu Lado (1986) veio como um álbum de incertezas e miscelâneas, assim como foi Seduzir (1981). Meu Lado contava com a música africana mesclada com sambas, funk psicodélico, soul, música nordestina e duas faixas interpretadas por Djavan totalmente em dialetos e línguas do continente africano: Nkosi Sikelel l-Afrika e So Bashiya Ba Hlala Ekhaya.

Logo depois, tivemos um álbum de transição entre o Djavan mais experimental e o Djavan mais maduro: Não É Azul, Mas É Mar (1987). O álbum mais internacional do artista até então, foi gravado em Los Angeles e vendido em diversos países pelo mundo. O músico brasileiro estava alcançando prestígio mundial e começou a assentar seu estilo a partir deste disco, que contava com uma mistura de tudo de interessante da música brasileira, principalmente o samba, música latina e uma espontânea influência da música espanhola, com algumas referências à cidade de Barcelona.

Então, chegamos a 1989, com um dos álbuns mais maduros do artista. Quando Djavan parecia ter assentado seu estilo, resolveu compor este álbum sem nome conhecido como Oceano, ou apenas Djavan (1989). Embora seja um álbum essencialmente misto, não é dado às incertezas de arranjo e ambientação da fase Seduzir-Luz-Lilás. O álbum é extremamente coeso e parece querer mostrar uma cara nobre do Brasil, como o romantismo de Gonçalves Dias. Sensível até dizer chegar, Oceano cria no ouvinte a sensação de que está sendo levado de canoa, sem pressa ou ansiedade, para cada canto do mundo de Djavan.

1. Curumim: A faixa inicial do disco oferece uma boa ideia do que ele será: criativo, sensível e melódico. Iniciando a percussão indígena, bem diferente do tribal africano dos discos anteriores, a faixa parece arrastar o ouvinte para dentro da floresta tropical. Contando a história de um índio criança (curumim) apaixonado, Curumim traz referências modernas como o G. I. Joe e lápis de cor, significando que a linguagem com a cultura indígena é principalmente figurada. A bela harmonia é de um sensibilidade à flor da pele, tocando o coração de qualquer um com a pureza da canção indígena. O arranjo é primoroso, recheado de contrapontos entre os baixos e o violão, envolve o ouvinte completamente na ambientação rústica da temática. Observação importante à voz feminina que entra após a primeira parte, versando uma belíssima monofonia que permanece até o fim. Uma das melhores faixas do álbum.

2. Oceano: Faixa que acabou criando o mito de que Djavan (1989) tivesse o nome de Oceano. A mais famosa do álbum e uma das estruturas melódicas mais sólidas da história da MPB. É impossível não se embalar pela melodia, pelo trombone e pelo teclado de Oceano, assim como violão que faz o ouvinte se perder completamente em meio aos solos "flamenco" (do mítico Paco de Lucia) que adornam a canção em diversos momentos. Lírica envolvente e apaixonada, Oceano é bem distante do abstratismo típico de Lilás e do surrealismo de Luz, tornando esta faixa uma dos maiores referências a Djavan até hoje. "Você deságua em mim e eu oceano" ou "Você diz: água em mim. E eu: Oceano"?

3. Corisco: Parceria com Gilberto Gil, Corisco é a representação nordestina de Oceano. Misturando o R&B suingado com a música nordestina, Corisco é uma composição em que facilmente podemos imaginar Gilberto Gil cantando perfeitamente encaixado com o arranjo e encadeamento harmônico que a música carrega. Porém Djavan já havia experimentado tal mistura antes em Meu Lado, com a faixa "Romance", e também se saiu muito bem. Familiar com a produção mista e já tendo feito outra canção com Gil, (Nvula Ieza Kia/Humbiumbi), Djavan novamente acerta o ponto.

4.Vida Real: Composição original de Nelson Motta, Chico Novarros e Michael Ribas, Vida Real é uma balada soul bem arranjada para Djavan interpretar. Não chega a ser uma experimentação, mas sim um revisitação do conceito explorado pelo artista em outros álbuns, como Seduzir e Não É Azul, Mas É Mar. Marcado por um sax poderoso, Vida Real possui uma ambientação típica do fim dos anos 80.

Nelson Motta

5. Cigano: Djavan resolve continuar a dar seus saltos na música contemporânea nesta faixa. Erguido sobre uma lírica coesa e poderosa, Cigano possui uma magia própria que é conquistada com pouco esforço através da guitarra e da percussão tipicamente do smooth jazz, porém menos compassada. Capaz de fazer bem aos ouvidos logo à primeira audição, Cigano é uma faixa comprometida com sensações das mais variadas formas. Talvez seja a faixa mais difícil de transcrever tecnicamente sem precisar lidar com o sublime melódico e com o arranjo que toca no fundo da alma da maneira mais irresistível possível. Por mim, a melhor faixa do álbum junto de Curumim.

6. Avião: Ainda comportado até aqui, Djavan lança mão no que sabe fazer de melhor: Samba sincopado. Avião dista bastante de outros sambas feitos pelo alagoano em termos harmônicos por possuir um jeito meio samba de gafieira, meio bossa-nova de lidar com acordes. A lírica é bastante interessante com uma temática nova sobre liberdade amorosa e amor-próprio, o que até demonstra certa sobriedade e maturidade do artista em relação à própria vida. Coesa, sofisticada e sacudida, Avião funciona como uma releeitura dos sambas do primeiro disco digna de ser aplaudida de pé.

7. Você Bem Sabe: Segunda parceira com Nelson Motta, a faixa é semelhante à Vida Real no que se refere ao estilo, sem muito espaço para experimentalismo. Mas alma de Djavan está lá no violão perfeitamente encaixada no piano de Nelson. A introdução e passagem da música é digna de nota: O arranjo é belíssimo e a melodia, maestral.

8. Mal de Mim: Seguindo o princípio de Cigano (princípio este que será potencializado no Djavan mais moderno), Mal de Mim é um soft/smooth jazz sofisticadíssimo manejado no inseparável violão de Djavan. Porém, criado numa ambientação mais reclusa, dando pouca liberdade a uma potencial interpretação que não a da nostalgia e da suavidade exalante original da canção. Envolto numa aura de solidão, porém doçura, a lírica possui métrica e arranjos atípicos para um jazz, assemelhando-se bem mais com as composições de "souls nordestinas" mais brandas dos álbuns anteriores.

9. Mil Vezes: De repente, ao fim de Oceano, algo muito estranho acontece. Mil Vezes, embora seja erguida em meio à doçura e sofisticação do álbum inteiro, é de longe bem mais experimental que as faixas anteriores. Sendo uma transição entre o que ouvimos em Não É Azul, Mas É Mar e o que ouviremos em Coisa de Acender (1992), Mil Vezes já começa diferente: Uma intro de bateria e violão aparentemente desconexos com o baixo se estendem por um pouco mais de meio minuto dando lugar a um groove funk que destoa de Oceano como um todo. Em seguida, o arranjo garante boas surpresas que dão um colorido à música muito típico do próximo álbum, provavelmente experimentando o novo conceito que será lançado em Coisa de Acender. Djavan não conseguiu manter-se comportado o álbum inteiro pelo que parece. Ainda bem.

A última faixa de Oceano parece anteceder a revolução de Coisa de Acender, álbum dos mais diversificados depois de Seduzir. Então, se preparem, pois a próxima postagem tratará do criativo Djavan experimental que, aliás, já estávamos com saudades.

sábado, 24 de janeiro de 2015

Homenagem musical: Djavan - Lilás

Chegamos ao sexto álbum de Djavan e a quinta postagem com análises dos álbuns em homenagem aos 66 anos de Djavan. Nesta postagem exploraremos o mundo pitoresco e abstrato de Lilás. Lançado em 1984, Lilás conta com nove faixas invés de 10, todas composições próprias de Djavan. Ainda sob a guarda da Sony Music (ou CBS), Djavan avança e aprimora o conceito lançado em 1982 no álbum Luz.

Contando com faixas, em sua maioria, alegres, assim como em Luz, Lilás poderia ser radiofônica por natureza como seu antecessor. Porém não é exatamente isso que o álbum explora. Diferente de Luz que colocou cinco de suas faixas como hits do cantor e compositor alagoano, Lilás o fez apenas com duas: Esquinas e Lilás, do disco homônimo.


A beleza e a graça de Lilás está na exploração do som em sua forma mais suingada possível e da fonética de um aparente absurdo. Parece que o disco é repleto de cores, desta vez soando mais como uma pintura expressionista abstrata do que surrealista-impressionista. Agora Djavan parece experimentar o Vangoghismo musical criando ambientes coloridos de forma completamente abstrata, desta vez, porém, através de pinceladas inteiras, ao invés de pontilhados. As frases e palavras são espalhadas como temas dentro das canções, formando um ambiente próprio que é difícil de não se emaravilhar. Na minha opinião, o melhor disco da carreira depois de Luz.

1. Lilás: "Amanhã outro dia, lua sai, ventania, abraça uma nuvem que passa no ar, beija, brinca e deixa passar". O verso inicial de Lilás é basicamente um quadro abstrato móvel, quase onírico, que mergulha o ouvinte num mar de sons amontoados. Erguido sobre o new wave e funk groove dos anos 80, sintetizador, baixo funk e bateria, o pop de Djavan é enfeitado pelas firulas de arranjos típicos da época e talvez tenha sido por esse motivo que alcançou como hit o grande público brasileiro e estrangeiro.

2. Infinito: Segunda faixa funkeada do disco, Infinito segue o princípio da harmonia simples e melodia suingada. A equipe americana que montou o arranjo instrumental de Lilás desta vez investe pesado no baixo e na guitarra, entregando um dos solos mais bonitos do disco. Sem pretensão de entregar uma faixa complexa, Djavan pinta um quadro em tons de roxo durante boa parte da música. Em seguida, floreia um pré-refrão um pouco mais complicado para, enfim, desaguar num refrão que brinca com os compassos. Djavan avisa: "Te vejo lá no luar, te espero lá do sol" no arranjo único que o sintetizador finaliza com muita beleza.

3. Esquinas: Segundo sucesso radiofônico de Lilás, esquinas é criado sobre um ambiente cristalino e cavernoso, como se encerrasse o ouvinte numa gruta. Djavan brinca com as notas altas e baixas através do pad de timbre fragmentado e do saxofone que entra solando de supetão próximo ao final, dando a dramaticidade necessária, mas não exagerada, que a poética lírica carrega.          

4. Transe: A partir desta faixa, o disco Lilás adquire um novo conceito abstrato de forma melhor explorada que em Luz. Transe é tudo, menos óbvio. A lírica absurda se junta com a tinta harmônica e o arranjo ansioso para formar um mundo completamente novo em que notas dissonantes e sétimas se unem num só corpo coeso. A música é uma pérola perdida em Lilás que foi resgatada por Djavan em sua turnê Ária, o que fez com que aqueles "hitfans" ficassem atordoados ao vivo.


5. Obi: Faixa mais abstrata do disco, Obi é uma de suas mais belas composições de samba. Parecendo feita especialmente para estrangeiros cantarem, Obi não necessita de um significado especial para demonstrar toda sua emoção interpretativa. Djavan instala o conceito do abstratismo de forma coerente: o que está ali pode não fazer sentido, mas o que você sente em relação àquilo, a impressão que fica, é o que realmente importa. Obi faz Açaí parecer um texto jornalístico de tão grande seu abstratismo e colorido sonoro.

6. Miragem: Continuando na linha do abstratismo lírico e musical, Miragem demonstra que Djavan é um verdadeiro monstro no que diz respeito a passar mensagens emocionais na forma de sons. Miragem é uma das melhores, se não, a melhor faixa do álbum, com muita honra. Garantia do prêmio de harmonia mais complexa dentre muitas composições de Djavan até então, Miragem é uma pintura de muitas cores dispersas, dos mais diferentes espectros, derivadas de um arranjo intrincado, evolutivo e concatenado com cada palavra. Simplesmente magistral e impressionante.

7. Íris: Faixa psicodélica, Íris apresenta características de arranjo e harmonia muito semelhantes a Transe, porém é bem mais suingada. Íris utiliza não apenas do jogo entre fonemas semelhantes para a criação do arcabouço harmônico, mas também palavras inteiras. A faixa é construída basicamente de baixo, sintetizador e um saxofone que faz sua aparição apenas próximo ao final, assim como em Esquinas.

8. Canto da Lira: A mistura do baião com o groove é uma experimentação que músico brasileiro nenhum no Brasil, além de Djavan, tinha o direito de fazer. Isso não bastou para tornar esta faixa uma experimentação completa: A segunda parte da música é completamente diferente do resto, possuindo um ritmo arrastado de algo entre reggae e bolero. A mistura fica tão estranha que a faixa pode ser digna da alcunha de mais experimental e abstrata do álbum. A lírica psicodélica é um show à parte: misturando o abstrato com o absurdo, Canto da Lira fala de algo que provavelmente só faz sentido na mente do seu criador.

9. Liberdade: A faixa final é ambientada numa redoma de sons ecoados, típicos da balada dos anos oitenta. O sintetizador e a bateria fazem todo o trabalho de trazer o psicodelismo à faixa de forma a tornar parte de um mundo onírico completamente vago e fugaz, sem limites propriamente estabelecidos. Liberdade é todo o trabalho de juntar o sereno com o histrionismo vocal de Djavan, concluindo a faixa com uma serenidade quase silenciosa e que dá fim à obra mais abstrata do artista até hoje.

A próxima postagem será sobre o álbum mais comportado e sensível que Djavan fez desde seu primeiro, Oceano (1989), originalmente de nome apenas "Djavan".

Homenagem musical: Djavan - Luz (1982)

Olá, caro leitor do Blog! Reencontramo-nos novamente, não é? Espero que esteja preparado para análise de hoje, pois eu estou bastante empolgado e... Ué? Por que a imagem que representa o álbum da postagem, no caso a capa do disco Luz, está à direita e não à esquerda?

Ah... Sim. É porque é o Luz...

Produzido debaixo das asas gigantescas da Sony Music e tendo Ronnie Foster como produtor, Luz não é nada parecido com os quatro álbuns anteriores produzidos pela EMI-Odeon. Em Luz, Djavan mostra uma faceta que ficara escondida durante quase todo o tempo em que esteve na EMI: o poeta psicodélico. Despontando de forma tímida em algumas canções como Alumbramento e Êxtase, o excêntrico Djavan psicodélico começa sua transformação, ainda que a princípio, amorfo. Esse Djavan cresce durante todo o álbum, sem fazer concessões, tomando sua forma definitiva em Lilás, álbum sucessor.

Longe de ser esforçado para agradar ouvidos educados, é em Luz que temos o Djavan mais autêntico até então. Talvez seja por esta forte característica que Luz seja a fonte dos maiores sucessos da carreira do artista. Faixas como Capim, Sina, Samurai, Pétala e Açaí são exemplos disso. Vamos conhecer esta nova criatura que está nascendo da luz?

1. Samurai: "Samurai é uma faixa nitidamente pop". A frase anterior é óbvia para qualquer um que cresceu ouvindo Samurai das mais diversas formas e versões. Famosa pelo "aaaaai" em cada frase, Samurai é uma faixa fonemática e concretista por natureza, dispensando um lirismo clássico. Parceria de Djavan com nada menos que Stevie Wonder, Samurai é um exemplo denso do que o alagoano é capaz com a sonoridade do português brasileiro a partir de uma música elaborada sobretudo para o soul-jazz norte-americano. Uma abre-alas perfeito para um disco que promete nada mesmo que a transformação total da sensibilidade musical do seu ouvinte.

2. Luz: O estranho swing funk sambístico carrega a aura psicodélica do disco. Porta-bandeira de um experimentalismo instrumental e harmônico extremos de sua carreira, Luz segue o conceito de canção-pintura: Pincela alguns tons, joga mais uns tons em cima, cria um ambiente harmônico de fundo, tudo isso com uma tinta lírica alucinógena que parece vir de um quadro meio surrealista, meio impressionista. Luz é uma faixa semelhante a um quadro de Monet: de perto, ela pode não fazer muito sentido e parecer até mesmo esteticamente arrepiante; porém, de longe, olhando o todo você enxerga a beleza da obra. Merece o destaque em ser a faixa-título do álbum por carregar em si a conceitualização do neo-djavan antropofagista da black music norte-americana que firmou a personalidade musical do artista até os dias de hoje.

3. Nobreza: A música dista do conceito pontual da black music do disco expresso nas últimas duas faixas, porém entrega o ouro na lírica inusitada, outra característica deste álbum. A canção parece se tratar a princípio de uma amizade entre um homem e uma mulher, provavelmente se transformando em um grande amor, tamanha a quantidade de referência doces e românticas. Porém, o verso mais próximo ao final revela do que realmente se trata: "uma grande amizade é assim: dois homens apaixonados". A temática, para a época, embora não possua exatamente teor homossexual, era bastante liberal. Se os discos anteriores estavam voltados a um público conservador e possuíam pontuais "rebeldias", em Luz cada faixa é um afronta estética. Nobreza foi uma das homenagens à Caetano presentes no disco.

4. Capim: Outra afronta estética. O belo samba-jazzístico repleto de saxs e trompas, convida o ouvinte a adentrar em mais um quadro impressionista. Montado em cima de um arranjo moderno, se comparado aos sambas-jazzy dos primeiros discos - principalmente no que diz respeito ao solo final produzido no sintetizador - a lírica é a chave da estética aberrante. Completamente visual, a letra explora espécies vegetais, animais e regiões brasileiras de forma - aparentemente - sonora. Capim, mais intensamente que em Luz, monta cada jogo de palavras com um intuito puramente estético e não se preocupa em se fazer entender nos detalhes. Conceito usado e abusado neste e nos vindouros álbuns.

5. Sina: Se em Capim a estética lírica surrealista-impressionista foi a base de toda obra, em Sina o conceito é arregaçado sem piedade. Faixa das mais famosas do artista e outra homenagem à Caetano ("como querer caetanear o que há de bom"), Sina envolve lentamente o ouvinte com um misto de música nordestina, soul e ritmos caribenhos sem se prestar a explicar nada. Desta vez, o jogo de palavras adentra o absurdo, principalmente no espetacular momento em que Djavan instrumentaliza a voz solando "azabatchú", "saraberrabá" e outras palavras incompreensíveis. Todo o arranjo vocal-instrumental permite a experimentação alcançar o ouvinte de forma completamente envolvente, sem estranhezas. Cada fonema soa exatamente como deve soar. Cada som, cada sibilo de "sss", cada nota encaixam-se perfeitamente nesse balaio de gato sonoro. Sina não é um sucesso atemporal de Djavan à toa e não merece menos que o título de melhor canção do álbum.
Caetano e Djavan  na TV Globo em 1983 "Um facho de Luz"

6. Pétala: Outro grande sucesso de Djavan, Pétala dispensa comentários em demasiado. Baseado no soul arrastado e no R&B, contando com a beleza do harmônico de notas suspensas de Djavan, Pétala possui uma lírica essencialmente psicodélica, invocando imagens e brincando com sons. É uma das faixas mais "comportadas" do álbum, mas nem por isso deixa de ser uma das melhores e mais mágicas composições da carreira do alagoano até hoje.

7. Banho de Rio: Voltando ao surrealismo-impressionista hardcore, Djavan agora explora a cantiga do sertanejo em busca de isolamento e um ambiente soturno. Acompanhado por rabecas e um violão, Djavan expressa uma profunda tristeza através de longas notas finais em cada verso. Criado no mesmo campo harmônico que Nobreza, Banho de Rio é uma derivação bem mais complexa, como se o artista tivesse olhando a base através de outra perspectiva.

8. Açaí: O solo de início escrito com um violão abafado e um piano de base cru remete ao soul. Mas como sabemos que se trata de Djavan em Luz, não será diante da mesma perspectiva. Desta vez, Djavan estica a base harmônica do soul até fagocitá-la em um processo antropofágico incubador do psicodelismo de Açaí. A faixa possui a letra mais surrealista do álbum - abordando diferentes tipos de "sons" - entretanto, curiosamente, este fato não a tornou menos pop. A união entre a sonoridade fonética, a melodia e o arranjo instrumental criou um ambiente propício para que o ouvinte fosse envolvido por um som indígena soulful sem sentir estranheza nenhuma. Pelo contrário: Assim como em Luz, Sina e Capim, o ouvinte é levado ao mundo criado por Djavan de mãos dadas com a estranha entidade musical que ali se apresenta, sem nenhum medo. Mas o que será que significa "açaí guardiã, zum de besouro, um imã, branca é a tez da manhã"? Bem, segundo o próprio Djavan, em entrevista, esses versos aparentemente nonsense têm uma explicação muito "clara" e "lógica". Eu, nortista criado em Belém do Pará, não chegaria à conclusão que ele chegou tão facilmente, mesmo que fosse da Academia Brasileira de Letras. Veja e tire suas próprias conclusões: https://www.youtube.com/watch?v=pFoKjjcLopE.

9. Esfinge: Esfinge é exatamente o que o ser mitológico que dá nome à faixa representa: um mistério assustador. Envolto na aura do R&B, Esfinge entrega ao ouvinte uma faixa sonoramente simples e ao mesmo tempo harmonicamente complexa. O colorido da canção pode ser descrito pelo poder emocional que essa música descarrega desde sua introdução. O arranjo ambiente fica sustentado pelo sintetizador, o saxofone e a guitarra compassados, sendo seguidos pelo refrão instável. Falando nele, poucas músicas conseguem trazer uma ambivalência tão grande em tempos tão próximos de uma canção como esta faz. Trocando em miúdos: Parte do refrão perfaz uma celebração que logo dá lugar à melancolia e, em seguida, aos dois, alternadamente. Não entendeu? Abra seu coração, pois a questão aqui é sentir, não racionalizar.

10. Minha Irmã: A curta Minha Irmã é mais uma pintura surrealista do álbum. Criada em meio a um caótico samba cunhado numa harmonia cíclica e rápida e um arranjo histriônico, Minha Irmã passa tão rápido quanto um bloco de carnaval. Literalmente: a faixa possui um pouco mais de dois minutos e os versos são apenas quatro. O efeito é interessante: os versos, provavelmente monólogos da irmã de Djavan, são interpretados primeiramente num tom baixo, de conselho, quase falados. Em seguida, os mesmo versos são soltos quase aos gritos, dando a entender que o quadro mudou: A chuva acabara de engrossar. Tudo isso em quatro versos. Apenas genial.

Djavan parecia ainda não estar completamente contente com o resultado de Luz. Havia um ponto que precisava ser mais trabalhado de forma a desligar completamente o ouvinte do conteúdo da letra. O próximo trabalho de Djavan é um reflexo de uma evolução do lirismo psicodélico. A próxima postagem será sobre Lilás (1984).      

sexta-feira, 23 de janeiro de 2015

Homenagem musical: Djavan - Seduzir (1981)

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"O pouco que aprendi está aqui. Pleno. Dos pés à cabeça". 

A frase presente no encarte do álbum é um esclarecimento. Quando, em 1981, se punha este disco para rodar na vitrola, o ouvinte era então convidado a passar por uma obra heterogênea por excelência. Seduzir é a própria imagem de tudo que foi produzido por Djavan nos últimos anos e o espelho do estilo inegavelmente inventivo do compositor.

Continuando as análises de álbuns em homenagem aos 66 anos do mestre Djavan, a postagem de hoje é sobre uma obra que pode ser utilizada sem culpa como uma referência de quem foi Djavan desde o seu lançamento pela EMI-Odeon em 1975. Adotando uma linguagem verdadeiramente "MPB", neste álbum Djavan sonoriza o Brasil da época, como se ele se esforçasse em criar um ponto de equilíbrio entre tudo o que estava sendo produzido pelos seus contemporâneos. O álbum é uma tessitura complexa de interligações inusitadas e que provoca no ouvinte um clima de instabilidade e incertezas. A ansiedade de não se saber do que trata a próxima faixa é o maior charme da obra. Seduzir foi o último disco produzido pela gravadora com a qual Djavan entrou no mundo da música comercial, a EMI-Odeon, e que fecha a primeira fase da carreira musical do alagoano. Vamos andar e voar para ver o mundo sonoramente mesclado de Seduzir?

1. Pedro Brasil: A faixa de abertura inicia-se de forma semelhante a um prólogo de peça de música clássica que aos poucos vai sendo "degradado" pelo som e pelas batidas profanas do violão de Djavan e do baixo de Sizão. Assim, tem início a ufanista e irônica "Pedro Brasil", uma homenagem ao nome Pedro: Um nome comum, porém possuidor de um forte peso histórico "Quem descobriu o Brasil foi Pedro, quem libertou o Brasil foi Pedro, quem construiu o Brasil foi Pedro". Com uma pegada indefinida entre samba e jazz, a faixa é uma reeleitura dos clássicos do primeiro disco. Diferentemente de Flor de Lis e Fato Consumado, Pedro Brasil possui na lírica um jogo de palavras histórico e social. Com uma temática tão diferente de todas que já abordou, Djavan já vai dando seu recado sobre o álbum: não vai ser um mera dejá vù dos anteriores.

2. Seduzir: Envolvido por um ambiente volumoso, um piano solitário vai soltando uma progressão de notas e acordes próprios da soul music, no melhor estilo Stevie Wonder. Assim, começa a segunda faixa, que dá nome ao álbum, e que é, sem dúvidas, uma das canções mais conhecidas deste trabalho, junto de Faltando Um Pedaço. A voz de Djavan, fazendo praticamente a linha do saxofone, puxa o piano através de suas notas de uma maneira provavelmente nunca antes explorada na MPB. O refrão adiciona palmas ao arranjo simples da canção entregando ao ouvinte uma faixa tipicamente pop norte-americana... Só que em português. Dessa forma, nós temos em Djavan o soul abrasileirado mostrando as caras pela primeira vez - de muitíssimas outras - e cujo formato se tornará o estilo favorito do artista no próximo álbum, Luz.

3. Morena de Endoidecer: Resultado da parceria com Cacaso, Morena de Endoidecer é uma pedra preciosa do disco. Complexa, melancólica, envolvente, a faixa se aparenta a uma Incelênça (um tipo de cantiga sertaneja muito comum nas canções de Dominguinhos e Elomar Mello) arranjada num ambiente silencioso, pronto para receber a voz de Djavan como principal instrumento. Composta para ser interpretada de modo dramático, a canção é uma mistura entre as faixas mais tristes de Alumbramento. Destaca-se o momento próximo ao final no qual o violão abafado se encontra com violinos e o violoncelo à la Meu Bem Querer, trazendo uma nova atmosfera à música e tornando-a ainda mais lúgubre sem em momento nenhum permitir exageros.

4. Jogral: Uma faixa autobiográfica, samba jazzístico... É impossível não se lembrar do primeiro álbum ao escutar Jogral. Porém, logo no primeiros momentos, o ouvinte sente algo diferente. Não é impressão: a canção é um desafio harmônico criado por Djavan. Compassos difíceis, notas saltitantes, progressões geniais. Tudo isso embalado por um violão valentão embrulhado numa batida extremamente sacudida acompanhada por uma linha de baixo enlouquecida. Tudo isso para demonstrar o trabalho e o potencial gigantesco da excelente banda Sururu de Capote, surgida na época para acompanhar Djavan em suas turnês.


5. A Ilha: Criada a partir de uma sensibilidade lírica absurda, A Ilha é uma das melhores faixas do álbum. A sensação que se tem é que canção vai levando o ouvinte numa barca construída pela percussão hipnótica, o baixo tenaz, o piano dissonante e a voz sossegada de Djavan. A partir do refrão, a música se torna outra: o sopro toma conta de tudo de forma que o ouvinte começa a ser levado aceleradamente para fora de sua rota em um redemoinho até que finalmente para, atirando-lhe a uma enorme distância de onde estava para lhe por novamente dentro do refrão confessional. Quando o refrão acaba novamente, surge a voz instrumental de Djavan que, por fim, cria a incerteza do que ocorreu durante a música e do que acontecerá a seguir no lado B do disco.
Filipe Mukenga

6. Faltando Um Pedaço: No Lado B, dá as caras o Djavan conceitual que mescla os pedaços infinitesimais e aparentemente desconexos da música popular brasileira. E é em Faltando Um Pedaço que temos isso da forma mais puramente intencional. A introdução é um violão acelerado que arremessa notas oriundas de uma escala tipicamente nordestina e que, ao findar, nos traz uma batida mais acomodada que corta completamente a expectativa do ouvinte ao originar mais um ambiente de incerteza. No lugar, surge a voz instrumental de Djavan acompanhando a harmonia do violão e as notas de um piano deslizante angustiado através de agudos. Logo depois, a canção propriamente dita inicia-se através de uma batida compassada apoiada em acordes complicados. 
A lírica é composta de versos visuais que descrevem o sentimento do amor: "o amor é como laço, um passo pruma armadilha, um lobo correndo em círculos pra alimentar a matilha". Terminada a primeira parte, o ouvinte novamente é golpeado pela melodia de agudos da voz de Djavan, desta vez instrumentalizada por um saxofone. O ouvinte, então, é encaminhado novamente ao violão compassado e sustentado pelos mesmo acordes. Desta vez, a introdução não reaparece, e sim uma bela instrumentalização orquestrada que então dá lugar ao piano e o violão novamente, desta vez em solo. Logo em seguida, a melodia reaparece mais uma vez com seu violão compassado que finalmente nos entrega a conclusão extremamente bela e sensível da faixa. O ouvinte a essa altura já percebe que o refrão simplesmente não existe e que está de cara simplesmente com a melhor faixa do disco. E com uma das mais belas e inventivas obras feitas na história da MPB.

7. Êxtase: Iniciando com um baixo empolgado, o ouvinte desta vez é levado mais profundamente para dentro do mundo estranho de Djavan. A excentricidade da faixa vai muito além da lírica lisérgica repleta de referências desconexas à vida carioca (Santa Teresa, São Sebastião, Vasco, Rua da Passagem, Baixada Fluminense), mas também se estende a forma em que a harmonia e o arranjo é processado. A harmonia é um samba completamente diferente do que era feito na época, com referências à soul music. O arranjo se destaca pelo bom trabalho da banda Sururu de Capote, principalmente do baixista Sizão Machado, como em Jogral, tornando esta mais uma música desafiante do disco. Destaque ao triângulo errante que entra somente durante o arranjo da parte mais louca do samba "O cordeiro de Deus, o bode expiatório, a testemunha ocular que não tem nada a ver".

8. Luanda: Na década de 80, Djavan visitou Angola e trouxe para o brasil diversas referências conceituais. Luanda é a faixa mais distante do disco, tanto em termos conceituais, quanto harmônicos, de arranjo e inclusive fisicamente. Estranha do começo ao fim e repleta de pontos de referência completamente desconhecidos aos ouvidos brasileiros, a faixa se mostra como a mais difícil de digerir. Não no sentido "intragável", mas sim difícil a sua compreensão e seu conforto ao ouvido tupiniquim. Abrindo-se como uma flor exótica em meio à policultura do álbum, Luanda é experimental até osso e fez que muitos puristas torcessem o nariz a princípio. Estéticas à parte, pessoalmente considero Luanda uma das mais excêntricas e, portanto, mais geniais composições do álbum.

9. Total Abandono: Rodeado por uma conceituação harmônica de um samba-corrido compassado, essa faixa possui algumas características de arranjo que a diferenciam do samba propriamente dito: A bateria sobressalente e o sopro grave em praticamente toda a música. Rica em sopros agudos, típicos do samba de partido alto, a canção é a que mais se distancia da inventividade conceitual do álbum, deixando o ouvinte com a sensação de estar visitando uma composição de Paulinho da Viola, uma grande influência de Djavan.

10. 
Nvula Ieza Kia/Humbiumbi: Somos novamente convidados a entrar no estranho mundo da música da África Subsaariana, porém, desta vez temos um convidado especial: Gilberto Gil. Nvula Ieza Kia é uma composição do angolano Filipe Mukenga, interpretada pelos dois brasileiros através de um fantástico arranjo afro-caribenho. Mais "digerível" que Luanda, Nvula Ieza Kia leva o ouvinte a um colorido e quente ambiente rítmico no qual a percussão é a rainha. Quando se chega em Humbiumbi, o ambiente muda. Somos envolvidos por um piano simples e uma percussão que se resume a alguns tambores tribais lentamente organizados. A última faixa entrega ao ouvinte uma incerteza maior quando inicia a bateria e o saxofone em meio às vozes eriçadas de Djavan e Gil em fonemas incompreensíveis. A faixa acaba fechando assim um dos discos mais imprevisíveis e heterogêneos de Djavan até o momento.

Seduzir foi uma pequena amostra do que viria a seguir em 1982/1983 com Luz, o álbum com maior número de hits do cantor. Teremos a aura do pop black norte-americano e a psicodelia instrumental sensível a níveis extremos na próxima postagem.

Pode curtir !


quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

Homenagem musical: Djavan - Alumbramento (1980)

CONTINUANDO A SEÇÃO DE POSTS EM HOMENAGEM AOS 66 ANOS DE DJAVAN

A análise da postagem de hoje refere-se ao terceiro álbum da carreira do mestre: Alumbramento, de 1980. Diferentemente dos dois discos anteriores, A Voz, O Violão, A Música de Djavan (1976) e Djavan ou Cara de Índio (1979), Alumbramento é todo envolvido numa aura ora de melancolia, ora de um lirismo psicodélico beirando o absurdo. Embora o álbum anterior possuísse faixas mais angustiantes como Álibi (sucesso na voz de Maria Bethânia) e Dupla Traição (regravada por Nana Caymmi), é em Alumbramento que somos verdadeiramente mergulhados no Djavan conhecido pela sonoridade desconcertante criada entre a dramaticidade de interpretação, a letra e o arranjo sublime.
Saindo da zona de conforto proporcionada pelo repertório regional em Cara de Índio (1979) e samba-bossa de A Voz, O Violão, A Música de Djavan (1976), o álbum de 1980 reflete um compositor internalizado em suas emoções e que, de repente, explode em canções repletas de angústia e dor, apenas quebradas por duas faixas completamente díspares. A característica mais crucial deste disco são parcerias: das dez faixas, apenas quatro são composições exclusivas de Djavan. O destaque das parcerias torna o disco único e emblemático, embora seja um dos álbuns mais "lado B" da carreira do alagoano.

1. Tem Boi Na Linha: O disco inicia agitado com este frenético samba carregado no baixo, bumbo e tom-tom, enfeitado com fios de trompete. Não é exatamente uma faixa que se afasta de Cara de Índio, remetendo quase imediatamente a Samba Dobrado e Serrado do álbum anterior. Isso demonstra que, pelo menos instrumentalmente, Djavan não pretende chocar o ouvinte de imediato. O que ocorre é que o lirismo impregna os ouvidos e é quase impossível não perceber que nada na letra faz sentido; exceto se os ouvintes forem cariocas ou fluminenses. É porque a faixa se referencia às diversas estações de trem que ligam bairros do município do Rio de Janeiro a outros municípios: Japeri, Honório Gurgel, Turiaçú, Cordovil, Anchieta, Vigário Geral, Santa Cruz, Zumbi e Todos os Santos, além de outras referências ao sistema ferroviário como os trens Vera Cruz. Tudo isso se interliga de forma quase absurda, embora o efeito da visão do todo faça sentido, característica típica do estilo de Djavan a partir deste álbum. A música é parceria de Djavan com Aldir Blanc e Paulo Emílio.

2.  Sim Ou Não: Um bolero compassado, a voz carregada de melancolia, o piano aparentemente desligado das notas vocais de Djavan, um sopro repleto de tristeza. Tudo converge para uma das faixas mais depressivas do disco. A letra é simples e trata da dificuldade do eu-lírico em se desvencilhar de um amor fracassado e dar continuidade a outro relacionamento. A harmonia encadeia-se de modo complexo, porém, como sempre, Djavan consegue tornar a melodia acessível, tornando Sim Ou Não uma canção de identificação sentimental a qualquer um coração partido.

3.  Lambada de Serpente: Parceria com Cacaso, a faixa inicia-se de maneira bastante incomum: vozes de algumas pessoas ao fundo aparentemente comentando sobre algo dá lugar ao violão tristonho que procurar imitar em acordes o estilo da viola caipira. Vozes inicialmente femininas entoam a harmonia vocal das estrofes iniciais e acompanham Djavan após o sofrido refrão "Lambada de serpente, a traição me enfeitiçou. Quem já teve amor ausente entende minha dor". Embora o nome da canção se refira à Lambada, ritmo paraense dançante, vemos na força resultante de letra, arranjos e harmonia, algo semelhante ao Lundu Marajoara, dança sensual típica da Ilha do Marajó, principalmente no ritmo do violão e voz cantada. A canção aprofunda o ouvinte no ambiente de melancolia e arrependimento do álbum sem exageros de nenhum modo.

4. A Rosa: Primeira composição de Chico Buarque do álbum, a canção é interpretada por ambos de forma alternada na introdução "lara leiê" e, em seguida, maestralmente nos versos seguintes deste maravilhoso e típico samba carioca. A letra, como esperado para um composição de Chico Buarque, é perfeitamente metrificada e interpretativa, emprestando à música um colorido lírico em rimas divertidas e, ao mesmo tempo, geniais. A harmonia é a mesma em várias estrofes subsequentes enfatizando a característica ambígua entre a inocência e a ironia do eu-lírico. Sem dúvida, uma das melhores faixas do álbum.

5. Dor e Prata: Novamente, voltando ao ambiente taciturno do álbum, Dor e Prata é inexplicável. A faixa apresenta um nível de complexidade superior e cria em quem a escuta os ouvidos e o clima para virar o disco para o lado B no qual se deparará com a melhor e mais melancólica faixa do disco, Meu Bem Querer. Os sopros metálicos, o piano saltitante, a voz filtrada de Djavan, a flauta em agudos vibrantes e o ganzá incansável criam uma atmosfera de isolamento e frio inesperada e quase palpável. O lirismo joga ouvinte num aprofundamento filosófico "crescer é como trair, de repente amanhecer já na hora de partir para vida" quebrado pela próxima conclusão particular "viver é mais que crescer, é querer achar o fim do saber, da lei da vida, do nada, de tudo, de si". Conclui-se que a faixa é sobre uma internalização sobre as próprias questões da vida.

6. Meu Bem Querer: Sopros e flautas iniciam a música acompanhados de um piano que despeja vinte segundos de notas em tempos cada vez menos espaçados até chegar a um clímax que nos remete a introdução de uma peça clássica. O clímax então é cortado pela modernidade da guitarra e a rítmica rápida e linear do prato. Assim começa a melhor faixa do álbum, Meu Bem Querer, imortalizado em "Coração Alado", telenovela de Janete Clair exibida pela Globo. Meu Bem Querer é uma faixa completa: arranjo perfeito, harmonia genial, voz afinada e letra perfeitamente encaixada com a proposta melódica. A dramaticidade carregada nos versos ecoa de forma potente por toda a canção. O refrão, que dura mais que as estrofes iniciais, praticamente silencia a instrumentação após a passagem do violino, soerguendo a voz de Djavan em um clímax que emociona musicalmente até os mais frios.

7. Aquele Um: Uma das faixas mais geniais do álbum é resultado da parceria com Aldir Blanc. A despeito da letra que é bem simples e cômica sobre um "santo que baixou em mesa de bar", a canção figura entre as mais complicadas para um intérprete. A rítmica da lírica é o ponto chave da música e um dos seus pontos mais incontornáveis. O "tchu-bi-tchubi-tchu" está lá harmonizando a voz que repete "zarakiê, zarakiê, zoro quê, zarakiê zô roquê, zarakê zô" acompanhada por um sintetizador ansioso e um sopro que solta um encadeamento de notas complexas de modo incansável. Se tudo isso já não é suficiente para figurar este samba entre as faixas mais inventivas do álbum, eu não sei o que vai convencer você.

8. Alumbramento: A faixa-título, parceria com Chico Buarque, mistura a poesia e a rima de Chico com o lirismo alucinógeno de Djavan. A canção é mais uma viga que sustenta o cúpula de melancolia do álbum, assemelhando-se a Meu Bem Querer através da introdução preparatória ao clima triste seguinte. A faixa não é de simples interpretação. O arcabouço de uma harmonia complexíssima e do arranjo apoiado num pianíssimo loucamente deslizante e num baixo épico forma uma das faixas de mais difícil deglutição auditiva. Entretanto, a genialidade da rima lírica garante um acompanhamento quase intuitivo das notas mais difíceis. Um momento de destaque é a terceira estrofe na qual tudo muda de rumo: De repente, o piano tecla de forma um pouco mais acomodada, as cordas ao fundo entrelaçam notas desconexas, embora sinérgicas, que finalmente confluem com intensidade, empurrando o ouvinte novamente no ambiente inicial. O final inesperado com o arranjo vocal de Djavan cria também espaço para uma bateria, um piano e uma pegada de violão mais soul, entregando ao ouvinte uma faixa quase antropofágica que, ironicamente, não torna possível identificar com clareza o elemento musical que a torna tão brasileira.

9. Triste Baía de Guanabara: Como é comum nos discos de Djavan, as últimas faixas são as que verdadeiramente lançam novos conceitos. Composição de Novelli e Cacaso, a seresta reúne os elementos instrumentais e de percussão de todas as faixas melancólicas do álbum como se estivesse tentando criar um resumo de tudo o que disco mostrou nos últimos minutos.  A letra é uma triste confissão à "minha santa idolatrada" que "não fazia quase nada pela minha fidelidade", embora "só pra você eu entreguei sem recusar meu coração". Repleto de angústia, Djavan passeia por uma melodia linear que se repete diversas vezes até finalmente reencontrar o verso inicial, concluindo a canção, como se ela estivesse andando com ouvinte em círculos e entregando uma canção fisicamente sensível.

10. Sururu de Capote: A última faixa é marcada pelo regionalismo, destacado pelos versos "sururu na casca é capote no Nordeste" e "Em São Paulo é bom, mas como lá eu não digo". Logo de início, o ouvinte sente-se adentrando em um terreno estranho que se torna cada vez mais peculiar, instável e até mesmo um pouco lisérgico. Quando o refrão finalmente inicia, o ouvinte é arremessado num ambiente fervente onde um pandeiro agitado, um piano tímido, uma guitarra alterada e um sopro marcado adentram os tímpanos como se estivessem vivos. Quando a música termina, o ouvinte sai sem saber o tipo de música que acabou de ouvir. Pois, bem, eu digo: você acabou de sair de dentro do mundo inventivo de Djavan onde estilos musicais são meras formalidades.

Aqui concluo a pequena análise do complexo álbum Alumbramento. Na próxima postagem, vamos acompanhar um dos álbuns mais "colcha de retalhos" da sua carreira e que criou o primeiro vínculo de Djavan com a música africana e onde ele se lançou a novas experimentações de arranjos inusitados para época, Seduzir (1981).

Se curtiu, curta ;D

quarta-feira, 21 de janeiro de 2015

Homenagem musical: Djavan

Djavan Caetano Viana, nascido em Maceió, Alagoas, é um dos maiores nomes da música popular brasileira de todos os tempos. Eleições da Rolling Stones Brasil à parte (que miseravelmente o pôs em octagésimo lugar entre cem), Djavan ainda é tema de discussão no que diz respeito ao seu trabalho.

E como o mestre está prestes a completar 66 anos no próximo 27 de Janeiro, este que vos escreve pretende analisar disco por disco, entre os principais, da extensa carreira do nosso Djá.


Djavan começou sua produção de álbuns bem depois de já ter composto e arranjado músicas para trilhas sonoras de novelas da Rede Globo. O que o lançou para o grande público foi sua vitória como segundo lugar no Festival Abertura com a canção "Fato consumado", perdendo o primeiro lugar para Carlinhos Vergueiro. Após o festival, foi encaminhado à Som Livre por Aloysio de Oliveira (produtor que lançou nomes como Tom Jobim e Carmen Miranda) e ali desenfornou seu primeiro disco: A voz, o violão, a música de Djavan, posteriormente intitulado de Djavan: A voz e o violão.


O nome do disco é praticamente um slogan da música de Djavan: Voz e violão. De timbre singular e violão vibrante, Djavan possui uma cadência única, exposta na canção "Fato consumado", com a qual participou no festival de música da Globo. A composição rítmica complexa, alimentada pela forma em que versos eram encadeados com a harmonia elaborada, é característica raiz de Djavan. O cantor alagoano antecipou um novo conceito de música popular brasileira ao tornar o caldo deste disco. Na verdade, o álbum nada mais é que uma clarividência do que viria a seguir na história da música brasileira.

1. Flor de Lis
Considerado seu samba-bossa mais famoso, Flor de Lis já foi alvo durante muito tempo de conspirações em relação à sua letra. É famoso o hoax sobre a morte da filha, Margarida, e da esposa, Maria. Boatos à parte, Flor de Lis é o carro-chefe do disco. A letra é sobre arrependimento. As primeiras estrofes, embora melancólicas, podem ser cantadas de maneira agitada, sem problemas. A isto se referencia a rebeldia de Djavan em seu lirismo musical, característica fundamental do seu estilo: A letra perfaz praticamente a função de métrica, não necessariamente trazendo um sentido claro para o público ou com um significado existencial profundo. Quase uma bossa mais agitada, o forte som dos pratos de percussão deixam bem claro o temper jazzístico aplicado ao samba. O refrão animado, e ao mesmo tempo triste, dos backing vocals embala os ouvidos.

2. Na Boca Do Beco: Contando com um arranjo mais próximo do samba propriamente dito, a música valoriza o violão do início ao fim, carregando-se de acordes encadeados perfeitamente com o ritmo vocal. A temática da faixa é sobre jogos de azar e homicídio, porém, novamente, a cadência musical é bem animada. Cheio de síncopes, o samba demonstra o domínio completo de Djavan sobre o violão.

3. Maçã Do Rosto: Aqui nós temos um corte violento no estilo mais sambístico que o disco apresentava até então. Maçã do rosto é um xote animado - um mix de Gilberto Gil, Luiz Gonzaga e Dominguinhos - acompanhado ao fundo por um baixo poderoso e um solo de guitarra acelerado que substitui a viola caipira. Mais uma vez, o ritmo complexo perfeitamente encaixado à letra torna a execução da canção única entre as canções nordestinas até então criadas no Brasil.

4. Pára-Raio: A faixa sambística carrega o que poderíamos classificar como a carga conceitual da criação de Djavan: Lirismo altamente conectado ao ritmo do violão, a parcial e aparente ausência de significado na letra e o arranjo intrincado, um quase caos pra época. A música praticamente arremessa o ouvinte para dentro do mundo particular da criação autoral de Djavan sem dó, proibindo qualquer tipo de interpretação auditiva que não seja "esta música é do Djavan" à primeira audição.

5. E Que Deus Ajude: Djavan volta ao samba sincopado jazzístico para contar a própria visão sobre sua carreira. Incorporando alguns elementos de outras faixas, E Que Deus Ajude é autobiográfica e focada em manter o ouvinte atento à letra. O lirismo continua conectado, porém desta vez, conta uma história linear. 

6. Quantas Voltas Dá Meu Mundo: Mergulhando o ouvinte na complexa e, ao mesmo tempo simples, música nordestina, Quantas Voltas Dá Meu Mundo repete em cinco estrofes semelhantes versos sobre a vida pacata do sertanejo. Harmonicamente complexa, a canção se destaca por um recurso famoso de Djavan: os fonemas aparentemente sem significado participam do arranjo e da melodia de forma complementar e inconfundível, dando mais colorido ao arranjo simples do violão.

7. Maria das Mercedes: Djavan desta vez se afasta bastante da proposição rítmica comum do foi feito até então. Maria das Mercedes brinca com a métrica sem dó e junta pandeiros a uma sopa harmônica esquisita, porém melodicamente redonda. A música simplesmente obriga o ouvinte a novamente adentrar no mundo particular de Djavan debaixo da complexa e ao mesmo tempo singela arquitetura de uma letra cômica.

8. Muito Obrigado: Outro samba jazzístico do álbum. Semelhante a E Que Deus Ajude, a canção se concentra a manter o ouvinte preso à letra. Faz com maestria o que propõe entregando uma melodia agradável e um refrão chiclete.

9. Embola A Bola: Djavan inicia a canção utilizando a palavra Cateretê, nome de uma dança rural brasileira de provável origem tupi, como se fosse um acompanhamento melódico da introdução, bem como durante o refrão. Tal conceito de utilizar um jogo de sons formados pelos fonemas entre os versos de uma música é utilizado por Djavan até hoje, principalmente em sambas. No caso deste "samba educado" (provável influência de Paulinho da Viola), o lirismo dá voltas em um assunto que o ouvinte não consegue compreender, forçando-o a prestar atenção na melodia, no violão e nas notas soltas ao fundo.

10. Fato Consumado: Embora não goste de samba, nesta faixa, o ouvinte é imediatamente levado a dançar. As síncopes bem casadas ao ritmo frenético do violão tornam esta a música mais interessante do disco. A letra fala de uma queixa amorosa direta a alguém e soa coerente, diferente do lirismo hermético de outras faixas de samba do álbum. Talvez por esse motivo Djavan tenha preferido apresentar esta composição no Festival da Canção: Era a mais "acessível" aos ouvidos educados da época. Pois, embora estivéssemos em franca ascensão de revoluções musicais como Clube da Esquina e Acabou Chorare, o festival era voltado a um público mais conservador.

11. Magia: Desta vez, Djavan lança pro alto todo o bom comportamento de Fato Consumado e arranca o ouvinte da zona de conforto. A faixa, totalmente diferente de tudo que foi feito no disco, parece estar realmente coberta por uma aura mística e o arranjo é, sem dúvidas, o mais genial do álbum. Misturando elementos instrumentais nordestinos "brancos" com o samba de roda negro, Magia é mais uma faixa que obriga o ouvinte a mergulhar profundamente no mundo complexo da harmonia djavânica. Estranho e hipnótico, o lirismo é espetacular, principalmente no verso em loop "Reserve o mito da magia só para você". Esta espiral de sons tem o intuito de extrapolar o jogo de fonemas, chegando a um nível mais elevado, ao acompanhar a voz de Djavan e dos backing de forma suave e "sobrenatural". Minha faixa preferida do álbum.

12. Ventos Do Norte: Nesta faixa Djavan finalmente lança de antemão o que será mostrado ao público nos próximos anos. Conceitual até a alma, Ventos do Norte mistura a música nordestina com a harmonia tipicamente norte-americana do blues. A canção dá liberdade ao ouvinte de escutar tanto o blues, quanto a serenata nordestina separadamente, ou então misturar os dois num processo quase que neutralizante. Serena e bem direcionada, a melancolia da letra acompanha o blues e a serenata de maneira igual, criando a sensação de entender duas canções em uma só.

Com a conclusão da última faixa, nota-se que  o disco "Djavan: A Voz e o violão" não meramente apresenta os principais elementos da criação de Djavan como também inicia processos pioneiros na música brasileira, como exemplo, a mistura da música nordestina com os ritmos negros norte-americanos.

O próximo álbum analisado será Alumbramento (1980), álbum que insere os conceitos criados em Ventos do Norte, Magia e Pára-raio de maneira exponencial.

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