Postagens populares

sábado, 22 de setembro de 2018

Homenagem musical: Djavan - Milagreiro (2001)



Após muito tempo sem postar, resolvi compartilhar minha experiência recente com mais um álbum marcante da carreira de Djavan. Calhou de eu estar, nas últimas semanas, ouvindo as faixas deste álbum repetidamente - o que ajuda muito a formar uma imagem mais nítida do conceito e "corpo" da obra. Inspirado, estou de volta para descrever minhas percepções.

Contando com 11 faixas, sendo duas frutos de parceiras espetaculares com Lulu Santos (Sílaba) e Cássia Eller (faixa homônima), Milagreiro é uma obra coesa, porém difícil de definir. Há uma infinidade de referências costuradas de formas um tanto obscuras, bem como arranjos diferentes de tudo que Djavan já fez, indicando que o álbum é um apanhado de experimentações e sonoridades. Eu enxergo Milagreiro como o mais impessoal da carreira de Djavan, por questões puramente subjetivas. Não há nada ali que nos diga com clareza o conceito pessoal que amarra aquela infinitude de peças que, de algum modo, fazem sentido apenas juntas. Livre dos exageros e complexidades de um dos seus antecessores, Malásia (1998), e flertando com novos ambientes, Milagreiro surge como um ponto fora da curva na carreira do artista alagoano e inaugura uma fase relativamente longa - que dura até Matizes (2007) - na qual as experimentações serão a tônica do seu trabalho. Seja através de arranjos repletos de guitarras distorcidas (Ladeirinha), percussão sofisticada, ainda que clean (Infinitude) ou uma pincelada em sintetizadores (Lugar Comum), diversos são os momentos em que Djavan brinca com novidades. Até mesmo temáticas anteriormente pouco exploradas como filosofia (Infinitude) e amizade (Sílaba) trazem um interessante frescor ao ouvinte contumaz. A impressão de impessoalidade do disco talvez seja porque os temas e arranjos trazidos parecem alienígenas para quem está (mal) acostumado com o modus operandi de Djavan. Ainda assim, há faixas para os gostos mais clássicos que dão pouco ou nenhum espaço pra experimentos, como Além de amar, Cair em si e Brilho da noite. Entretanto, mesmo nessas canções há uma novidade: a harmonia cíclica. Artifício pouco explorado pelo alagoano, a regularidade dos acordes e notas parece que é o mais em comum entre todas as faixas. Versos que se repetem junto a poucos acordes fazem as melodias grudarem mais facilmente no ouvido. Um provável exercício do artista para tornar seu som mais pop e acessível.

1. Farinha: A primeira faixa é uma gostosa mistura do xote com a guitarra, um conceito que ainda que não seja nenhuma novidade na MPB, nem em sua obra (Vide o solo de Maçã do Rosto), tem suas nuances próprias. A principal é a presença da guitarra aqui basicamente substituindo o violão por inteiro. Isso contribui para que a música tenha uma natureza híbrida entre os clássicos, mas seja facilmente identificável numa amostragem às cegas como pertencente a Milagreiro. Sem contar na estranha temática da letra: uma homenagem à cultura nordestina do consumo da farinha e da euforbiácea macaxeira.

2. Om: Este belo soul se apoia nos graves para manter o clima de confissão que a letra transmite. A guitarra onipresente do filho Max Viana é essencial para que a intimidade da faixa se mantenha durante deliciosos 4:28 minutos, principalmente nos suspiros instrumentais floreados pelo arranjo "modernoso" do teclado. A letra literalmente romântica tem algumas pistas de sua real intenção: "Sou instável como a cidade", "você que nasceu com a beira pro rio", me soa como uma homenagem subjetiva à Maceió, cidade natal do cantor, visto que várias faixas aparentam ter uma lírica nostálgica. Porém, esta é minha interpretação apenas.

3. Meu: Outra música que acredito homenagear um ser não-vivo. "Meu" e "Ô louco" dão as dicas - fica com você a interpretação do que ele está homenageando (mas de repente pode ser a esposa mesmo, eu sinceramente não sei). É uma bela música com alguns pontos interessantes: os pratos no meio da canção, a guitarra saltitante, as maracas compassadas e o piano que criam algo como um Malásia pós-coito: Satisfeito, tranquilo, latino e levemente complexo.

4. Ladeirinha: A partir daqui, Djavan se arrisca mais e nos entrega obras singulares que certamente figuram no topo do coração dos fãs. Esta valsa começa simples, como se assistíssemos ao lado de Djavan o nascer do sol num jardim à penumbra. A letra toda é imagética sendo impossível não visualizar as sensações nostálgicas que o artista pretendeu. Porém, quando as primeiras batidas da bateria do filho João Viana começam, a música rapidamente se transforma. O que vemos a partir de então são apenas as distorções na guitarra de Max acompanhadas do incessante ostinato do prato de condução. A confluência de ambos os arranjos ajuda a criar um climax e entregar uma conclusão harmônica delicada como a própria letra. Sem dúvidas uma das melhores do álbum.

5. Infinitude: Outra experimentação sem referências muito claras, porém que cumpre o que intende. O ouvinte percebe de supetão que há algo de indígena em alguns termos, mas o arranjo peculiar faz com esta primeira impressão transcenda ao decorrer da canção. Logo após os primeiros minutos, o arranjo adquire cores completamente estranhas, embora acolhedoras, principalmente em seguida à entrada da percussão "infinita" e o destaque dado à guitarra distorcida na harmonia. A letra é um espetáculo à parte. Aqui Djavan fala sobre um conceito amplo de Amor e brinca com a filosofia nietzschiana nos pondo de frente com nossa moral e visões egoicas. O resultado é uma agradável e inusitada canção entregue para que qualquer ser humano, apaixonado ou não, suspire.

6. Milagreiro: Faixa-título, Milagreiro é outra experimentação, porém que mistura referências mais claras: Religiosidade, traição e solidão, temas profundos e complexos, explorados novamente (p.ex. Lambada de Serpente) agora sob uma nova ótica. O arranjo é formado por poucos instrumentos, porém muito bem aproveitados através de diversas frases melódicas moldadas pelo violão. Cássia Eller segura as pontas agudas da canção e funciona como um contra-ponto feminino às notas altíssimas que Djavan só consegue alcançar no falsete. A complexidade é tamanha que a letra se repete para simplificar a absorção pelo ouvinte, o que realmente acaba funcionando visto que a música estourou nas rádios na época. Difícil imaginar um tango tão sofisticado fazendo o mesmo sucesso hoje em dia - tenho minhas convicções que não - mas é indubitável que a presença de Cássia Eller alavancou muito a popularidade da canção.

7. Brilho da Noite: Este jazz se apresenta como clássico logo nos primeiros minutos. Djavan sempre fez muito bem black music americana, abrasilerou várias, latinizou muitas. Porém, desta vez, resolveu não mexer no gênero. Djavan, em Brilho da Noite, nos entrega o jazz mais puro possível, aproveitando o filho Max para explorar a guitarra através de um grande ostinato que dura quase toda a música. A assimilação de gêneros sofisticados pelo ouvinte médio nunca foi tão fácil como em Brilho da Noite - uma tendência que será repetida mais à frente em Cair em si.

8. Além de Amar: Uma balada romântica sem muitas novidades musicais. Reciclagem de outros álbuns (Seduzir, Luz e Djavan 1989), Além de Amar é um respiro após um mergulho profundo em experimentações, visto que é inegável a zona de conforto em que Djavan se põe nesta canção.

9. Lugar-Comum: Faixa-irmã do trabalho produzido no disco anterior, Bicho Solto (1998), a novidade fica por conta do uso de sintetizadores no arranjo e a harmonia cíclica pop. Como se Djavan estivesse novamente tentando se comunicar com o grande público, principalmente os mais jovens. Isso parece bem claro na temática da letra: um ode ao submundo das casas noturnas e da pegação ("E essa mulher, pura chave de cadeia, o que quer o que faz na minha teia?").

10. Sílaba: Parceria com Lulu Santos, Sílaba parece ser um mais-do-mesmo da black music que Djavan tem produzido nos últimos álbuns. Entretanto, aqui, o diabo mora dos detalhes. São diversas as minúcias que tornam esta canção única: A guitarra cíclica que cria uma harmonia "pingada" durante a introdução, o nostálgico sintetizador anos 1980, as percussões pontuais com sons eletrônicos, a mudança rítmica brusca fragmentando a música em três partes bem nítidas. Sem contar na temática sobre amizade e suas responsabilidades afetivas. Uma das maiores pérolas subestimadas do álbum.

11. Cair em si: Candidata forte à melhor canção do álbum com conta de sua dupla natureza, Cair em si ganhou até clipe, mas não teve a mesma notoriedade de Milagreiro. A letra versa sobre o ato de se apaixonar visto sempre de uma forma peculiar ("Se terei sono tranquilo ou vida sobressaltada, não sei nada"). A canção tem várias camadas na progressão harmônica e nos arranjos, porém se mantém extremamente simples melodicamente - outra vez lançando mão da complexidade controlada. Deste modo, Djavan fecha com chave de ouro este álbum que soa "impessoal" e, ao mesmo tempo, paradoxalmente íntimo, aconchegante. Aqueles típicos álbuns que a gente quer morar dentro, como se ali existisse um universo próprio, particular, regido a partir das próprias regras. Um álbum complexo sim, porém de fácil impregnação nos ouvidos de qualquer um.

terça-feira, 27 de janeiro de 2015

Homenagem musical: Djavan - Malásia (1996)

Após passarmos pelo dançante e agitado Coisa de Acender, é hora de entrarmos no mundo exótico de Malásia (1996). Desta forma, chegamos ao fim das análises homenageando o nosso grande artista que faz 66 anos no dia de hoje. Coincidência ou não, Malásia é meu álbum favorito da carreira de Djavan.

Ambientado no ambiente mais estranho e incerto desde Meu Lado (1986) e Seduzir (1981), Malásia apresenta sobretudo um Djavan maduro que sabe muito bem onde pisa e arrisca por pura vontade de expandir os limites. A incerteza gerada pelo álbum não é pelas referências múltiplas metralhadas, mas sim a incapacidade do ouvinte de primeira viagem em encontrar um ponto em comum entre elas. Malásia é um grande quebra-cabeças que apresenta o maior número de peças de composições de outros artistas até então: são três no total, número relativamente grande.

Saindo um pouco das referências à música latina, Djavan passeia pelo acid jazz e blues, o cancioneiro nordestino, o complexo jazz modal e volta pros ritmos latinos com o samba jazz latino e a rumba. Diversificado como em Coisa de Acender, Djavan desta vez retorna a um mundo interior djavânico e à lírica absurda em várias faixas do disco.

1. Que Foi My Love? - Com um título bastante inusitado, a faixa agarra o ouvinte pelo pescoço e grita "Presta atenção!". Realmente é difícil não ficar atento à lírica e ao arranjo maravilhosos deste blues com elementos de acid jazz. Isso tudo combinado com uma letra bem-humorada e por cômicos comentários de Djavan durante o transcorrer da cena então ilustrada. Leve e divertida, Que Foi My Love? é resultado da experimentação de Djavan ao vivo dentro do estilo da black music reinventada por ele mesmo.

2. Seca: A melancólica faixa seguinte é baseada no estilo de cancioneiro popular sertanejo e nordestino de Dominguinhos assim como em Estória de Cantador de "Djavan" (1979). Acompanhado pelo violão e um triste acordeão durante toda a primeira parte e por um sax barítono no refrão, Seca trata o ouvinte como um ser sensível que entende o sofrimento alheio por meio de palavras e de sons.

3. Nem Um Dia: Famosíssima canção de Djavan e único hit do álbum, Nem Um Dia tem uma estrutura muito diferente de outras soul music abrasileiradas dos outros álbuns, sendo carregado no nível mais baixo do espectro (sons graves) e com a estranha presença de elementos exóticos no arranjo, principalmente as castanholas e um piano de cauda. Existem vários pontos na harmonia que são preenchidos de maneiras pouco usuais, principalmente graças à estrutura lírica altamente conectada com cada som. O destaque maior talvez seja para as linhas melódicas paralelas à principal em várias partes da música.

4. Não Deu... - Este jazz modal faz parte de uma experimentação madura de Djavan com harmonias complexas em Malásia que começa a partir daqui. A lírica de Não Deu... é narrada provavelmente em eu-lírico feminino demonstrada pelo verso "Eu sonhei viver com você assim dedicado a mim, de tudo me proteger pra me ver feliz a te agradar", uma triste reflexão de um tipo de amor maternal não correspondido. Ambientado num clima mais melancólico que em Outono, do álbum anterior, Não Deu... é bem menos minimalista e conta com um arranjo primoroso de piano, sax e cimbal vassourinhado, um ponto-chave que destaca Malásia.

Paulinho da Viola

5. Deixa O Sol Sair: A faixa começa com um samba jazz latino agitado que remete a Não É Azul, Mas É Mar (1987) sem reciclar ideias já lançadas no álbum. Harmonicamente bem estruturado e repleto de detalhes minunciosos no arranjo, a faixa é mais um grande tesouro nesses dois principais aspectos de Malásia sem ainda entrar no exotismo de outras faixas do álbum.

6. Tenha Calma: Outra canção com eu-lírico feminino, Tenha Calma é um belo smooth jazz erguido em mais uma complexa harmonia. As linhas melódicas paralelas, marca registrada de todo Malásia e característica de uma musicalidade e composições maduras, tomam conta do ouvinte embalando-o numa teia emocional de reflexões amorosas. Assim como Não Deu..., Tenha Calma é bem pouco minimalista contando com uma variada classe de instrumentos e percussões formando um corpo coeso e coerente. O fim da canção emenda uma composição de Tom Jobim e Vinícius de Moraes, "Sem Você", que possui a mesma estrutura harmônica.

7. Irmã de Neon: A exótica próxima faixa é uma mistura entre a música cubana e o jazz esculpidos sob uma harmonia bastante complexa. Contando com uma lírica abstrata, Irmã de Neon parece não falar nada com nada e que, como foi em Lilás, aparentemente feita para causar efeitos sonoros e melódicos - ainda que façam algum sentido para o próprio compositor. O arranjo conta com os elementos principais da música latina sem descambar numa repetição do que foi lançado no disco anterior, Coisa de Acender.

8. Cordilheira: Outra das faixas exóticas com lírica abstrata do disco, Cordilheira é uma canção estruturada como um bolero esquisito em que a percussão e o arranjo não conseguem apresentar uma forma definitiva. Talvez por ausência de referências eu mesmo não tenho como classificar esta canção em qualquer estilo musical que eu conheça. No fim das contas, o resultado final entrega ao ouvinte uma bela melodia enfeitada por um dos arranjos mais complexos e coloridos do álbum.
Charles Chaplin

9. Malásia: A faixa mais difícil e musicalmente complexa do álbum inteiro é como um retrato fiel da obra como um todo nesse quesito. Porém, exótica do início ao fim, Malásia quase choca ao estapear o ouvinte com encadeamentos estranhos, compassos ternários e quaternários compostos na mesma música e referências distantes. A lírica é permanentemente abstrata e assim se torna coerente com o arranjo bizarro da música. Bem provavelmente, Djavan queria passar a ideia de que ele era capaz de produzir um nível ainda mais elevado de experimentalismo. Praticamente como se mensagem da canção fosse: "Eu posso fazer o que eu quiser com a música. Eu sou Djavan".

10. Coração Leviano: Interpretação da canção de Paulinho da Viola e imortalizada por Clara Nunes, Djavan leva o ouvinte para o rico e sofisticado mundo do samba de Paulinho sem fazer alardes conceituais, visto que a parte exótica do álbum termina em Malásia, faixa anterior. Simplesmente maravilhosa.

11. Sorri: Canção original de Charles Chaplin e versão de João de Barro, Sorri é uma bela versão acústica violada.
Tom Jobim e Vinícius de Moraes

12. Correnteza:  Bela composição de Tom Jobim e Luiz Bonfá, Djavan entrega uma versão próxima ao conceito da música caipira-indígena "classuda" com um arranjo dos mais primorosos e bem-feitos do álbum inteiro.

Bem, após tantas postagens, chega ao fim as análises dos principais discos de Djavan anteriores ao seu primeiro DVD, Djavan Ao Vivo. Espero que eu tenha contribuído pelo menos um pouco com o ouvido de vocês. Comecei a ouvir Djavan quando me apaixonei por seu timbre e suas composições ao assistir Djavan Ao Vivo. Percebi que tinha muito o que aprender em relação a violão. Minha vontade de compor certamente veio de Djavan e a muito tenho a agradecê-lo! Obrigado, Mestre!

Homenagem musical: Djavan - Coisa de Acender (1992)

1992, Djavan lança o álbum Coisa de Acender pela Sony Music. A capa já revela a conceitualização que será o disco: De perfil, num ângulo pouco comum sob uma luz forte, demonstrando uma nova ótica do artista. Coisa de Acender foi um álbum impar na carreira do alagoano por dois motivos: O primeiro, mais óbvio, é uma gama de hits, coisa que não acontecia desde Luz, em 1982. O segundo motivo é a estrutura new concept de ligação entre as nove faixas do álbum: a black music latinizada.

Estamos diante de um diversificação de estilos muito grande, porém uma consolidação daquilo que nasceu dez anos atrás em Luz: a suingada black abrasileirada. Coisa de Acender conta com quatro faixas de participações especiais ou composições alheias. Não obstante, o resultado final é um dos mais diversificados discos do Djavan maduro, surgido após o último "Djavan" (1989) ou "Oceano".

1. A Rota do Indivíduo: Composição original de Orlando Morais, A Rota do Indivíduo ou "Ferrugem", é uma daquelas canções que embala de forma arrepiante o coração humano. Fria e ao mesmo tempo aconchegante, a faixa apresenta o minimalismo com um arranjo incorporado apenas por um violão e a voz de Djavan durante praticamente todos os quatro minutos de duração, havendo uma quebra com a introdução do violino posteriormente. A balada sertaneja ganha na voz de Djavan um conceito melancólico, porém extremamente belo, sem cair na dramaticidade de faixas mais brandas de álbuns anteriores e atingindo a medida certa da triste canção sertaneja.

2. Boa Noite: O funk latinizado de Boa Noite é um dos grandes hits radiofônicos da carreira de Djavan. Alicerçado por um lírica profunda sobre a quebra do paradigma do amor idealizado, Djavan provoca nada menos que uma necessidade absurda de ser levado pelo contrabaixo suingado, pela guitarra leve e pelo alto sax apaixonante. Uma prova definitiva de que não apenas Tim Maia e Ed Motta produziam boas canções de black music na época.

3. Se: Outra faixa de black music latinizada e talvez seu maior sucesso até hoje, Se é exaustivamente cantada por inúmeros covers de Djavan em todo o país. Não é por menos: a canção possui uma pegada genial entre as notas e a letra, quase que grudando no cérebro. A lírica não é simples em todos os momentos, mas possui versos completamente voltados ao pop: "Você disse que não sabe se não, mas também não tem certeza que sim", "Você sabe que eu só penso em você, você diz que vive pensando em mim" e até o controverso verso "Mais fácil aprender japonês em braile do que você decidir se dá ou não". Embalado por vozes de fundo tipicas da soul music, Se é um aprimoramento do que foi iniciado em Luz (1982).

4. Linha do Equador: Outro grande sucesso do cantor e compositor alagoano, Linha do Equador é uma parceria com Caetano Veloso, seu grande amigo, mais que demonstrando a ideia de que Coisa de Acender é realmente um acertado resgate de Luz. Porém, Linha do Equador vai bem mais além, deixando de ser apenas um soul suingado para se tornar uma grande sopa de vários sabores, entre eles o samba e o funk. Tratando de um tema latino-americano e, sobretudo, brasileiro, Linha do Equador é uma faixa que traz toda a rítmica lírica da língua latina e se torna um verdadeiro retrato musical da América.

Álbum "A Rota do Indivíduo" de Orlando Morais


5. Violeiros: A partir daqui, Coisa de Acender começa a se tornar mais diversificado e abranger outros ritmos latinos. A faixa Violeiros é um corte brutal na primeira parte do álbum, apresentando ao ouvinte uma outra face de Djavan que havia sido deixada de lado há algum tempo: o nordestino. Violeiros é semelhante a um repente ou cantoria de viola, arte nordestina baseada em versos improvisados acompanhados principalmente por uma viola e/ou acordeão. No caso desta canção, há uma singela mistura do repente com a música africana próximo ao final, nas rítmicas de flauta e nas duras batidas de caixa. Baseada no poema de Manuel Bandeira "Cantadores do Nordeste", Djavan eleva a lírica a outro nível quando mistura a poética original com o estilo "violado" do repente. Simplesmente genial.

6. Andaluz: É interessante como faixas mais lado B de Djavan me conquistam. Talvez por parecerem baús esquecidos, enterrados na praia de uma ilha deserta. É o que ocorre com Andaluz, na minha opinião a melhor faixa do álbum. Andaluz é uma interessante mescla entre a música europeia e a africana, ambientada num mundo lírico confuso, onírico e que praticamente obriga o ouvinte a entregar os ouvidos comportados de uma vez. A introdução de quase um minuto passa a ideia de uma canção embalada e compassada que rapidamente é substituída por outro arranjo completamente distinto do resto do álbum, apoderado pelo piano dissonante. Após o refrão, porém, o arranjo africano surge de supetão, entrelaçado entre palavras sem muita lógica. Porém, outra quebra ocorre em seguida: Versos em francês com um forte sotaque africano, cantados por sua filha Flávia Virgínia, iniciam-se, arremessando o ouvinte contra uma parede repleta de referências desconhecidas pelo ouvido tupiniquim. Sem dúvidas, umas das faixas mais difíceis do álbum e da carreira de Djavan.

7. Outono: A sofisticada faixa seguinte é gerada no interior de um complicado jogo harmônico que há tempos não víamos em Djavan. A lírica abstrata é manejada dentro de uma ambientação do smooth jazz de uma forma ainda não realizada por Djavan em seus discos anteriores. Paradoxalmente, não há uma grande complexidade no que diz respeito ao arranjo, tornando esta mais uma bela canção minimalista do álbum.

8. Alívio: Menos focado no violão, Djavan esbanja ritmo na black music latinizada novamente, assim como fez em Se. O fretless bass de Alívio, parceria de Djavan com Arthur Maia, é um belo detalhe no arranjo da canção e, praticamente, quase toda sua alma junto ao teclado. Embora Alívio seja ambientada num mundo tropical como em Linha do Equador, a faixa é mais interiorizada e prende o ouvinte numa nova perspectiva de sua conceitual black music latina, entregando momentos realmente emocionantes.

9. Baile: A última faixa nasce do mesmo conceito de arranjo lançado em Linha do Equador. A lírica segue um padrão poético básico até chegar próximo ao final no qual Djavan inicia um estranho jogo de palavras aparentemente desconexas e cuja finalização apresenta uma conexão "tudo somos na insanidade exata do amor". Insanidade essa que Djavan retorna de forma triunfal no próximo disco, Malásia.

Então, até Malásia!

segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

Homenagem musical: Djavan - Djavan (Oceano) (1989)

Em 1984, Lilás despontou no mercado fonográfico mundial como um álbum diferente de tudo que Djavan já havia feito até então. Com uma pegada suingada do funk dos anos 80, letras absurdas e uma ambientação expressionista-abstrata, Lilás rendeu críticas, bastante positivas, de todos os lados.

Em seguida, Meu Lado (1986) veio como um álbum de incertezas e miscelâneas, assim como foi Seduzir (1981). Meu Lado contava com a música africana mesclada com sambas, funk psicodélico, soul, música nordestina e duas faixas interpretadas por Djavan totalmente em dialetos e línguas do continente africano: Nkosi Sikelel l-Afrika e So Bashiya Ba Hlala Ekhaya.

Logo depois, tivemos um álbum de transição entre o Djavan mais experimental e o Djavan mais maduro: Não É Azul, Mas É Mar (1987). O álbum mais internacional do artista até então, foi gravado em Los Angeles e vendido em diversos países pelo mundo. O músico brasileiro estava alcançando prestígio mundial e começou a assentar seu estilo a partir deste disco, que contava com uma mistura de tudo de interessante da música brasileira, principalmente o samba, música latina e uma espontânea influência da música espanhola, com algumas referências à cidade de Barcelona.

Então, chegamos a 1989, com um dos álbuns mais maduros do artista. Quando Djavan parecia ter assentado seu estilo, resolveu compor este álbum sem nome conhecido como Oceano, ou apenas Djavan (1989). Embora seja um álbum essencialmente misto, não é dado às incertezas de arranjo e ambientação da fase Seduzir-Luz-Lilás. O álbum é extremamente coeso e parece querer mostrar uma cara nobre do Brasil, como o romantismo de Gonçalves Dias. Sensível até dizer chegar, Oceano cria no ouvinte a sensação de que está sendo levado de canoa, sem pressa ou ansiedade, para cada canto do mundo de Djavan.

1. Curumim: A faixa inicial do disco oferece uma boa ideia do que ele será: criativo, sensível e melódico. Iniciando a percussão indígena, bem diferente do tribal africano dos discos anteriores, a faixa parece arrastar o ouvinte para dentro da floresta tropical. Contando a história de um índio criança (curumim) apaixonado, Curumim traz referências modernas como o G. I. Joe e lápis de cor, significando que a linguagem com a cultura indígena é principalmente figurada. A bela harmonia é de um sensibilidade à flor da pele, tocando o coração de qualquer um com a pureza da canção indígena. O arranjo é primoroso, recheado de contrapontos entre os baixos e o violão, envolve o ouvinte completamente na ambientação rústica da temática. Observação importante à voz feminina que entra após a primeira parte, versando uma belíssima monofonia que permanece até o fim. Uma das melhores faixas do álbum.

2. Oceano: Faixa que acabou criando o mito de que Djavan (1989) tivesse o nome de Oceano. A mais famosa do álbum e uma das estruturas melódicas mais sólidas da história da MPB. É impossível não se embalar pela melodia, pelo trombone e pelo teclado de Oceano, assim como violão que faz o ouvinte se perder completamente em meio aos solos "flamenco" (do mítico Paco de Lucia) que adornam a canção em diversos momentos. Lírica envolvente e apaixonada, Oceano é bem distante do abstratismo típico de Lilás e do surrealismo de Luz, tornando esta faixa uma dos maiores referências a Djavan até hoje. "Você deságua em mim e eu oceano" ou "Você diz: água em mim. E eu: Oceano"?

3. Corisco: Parceria com Gilberto Gil, Corisco é a representação nordestina de Oceano. Misturando o R&B suingado com a música nordestina, Corisco é uma composição em que facilmente podemos imaginar Gilberto Gil cantando perfeitamente encaixado com o arranjo e encadeamento harmônico que a música carrega. Porém Djavan já havia experimentado tal mistura antes em Meu Lado, com a faixa "Romance", e também se saiu muito bem. Familiar com a produção mista e já tendo feito outra canção com Gil, (Nvula Ieza Kia/Humbiumbi), Djavan novamente acerta o ponto.

4.Vida Real: Composição original de Nelson Motta, Chico Novarros e Michael Ribas, Vida Real é uma balada soul bem arranjada para Djavan interpretar. Não chega a ser uma experimentação, mas sim um revisitação do conceito explorado pelo artista em outros álbuns, como Seduzir e Não É Azul, Mas É Mar. Marcado por um sax poderoso, Vida Real possui uma ambientação típica do fim dos anos 80.

Nelson Motta

5. Cigano: Djavan resolve continuar a dar seus saltos na música contemporânea nesta faixa. Erguido sobre uma lírica coesa e poderosa, Cigano possui uma magia própria que é conquistada com pouco esforço através da guitarra e da percussão tipicamente do smooth jazz, porém menos compassada. Capaz de fazer bem aos ouvidos logo à primeira audição, Cigano é uma faixa comprometida com sensações das mais variadas formas. Talvez seja a faixa mais difícil de transcrever tecnicamente sem precisar lidar com o sublime melódico e com o arranjo que toca no fundo da alma da maneira mais irresistível possível. Por mim, a melhor faixa do álbum junto de Curumim.

6. Avião: Ainda comportado até aqui, Djavan lança mão no que sabe fazer de melhor: Samba sincopado. Avião dista bastante de outros sambas feitos pelo alagoano em termos harmônicos por possuir um jeito meio samba de gafieira, meio bossa-nova de lidar com acordes. A lírica é bastante interessante com uma temática nova sobre liberdade amorosa e amor-próprio, o que até demonstra certa sobriedade e maturidade do artista em relação à própria vida. Coesa, sofisticada e sacudida, Avião funciona como uma releeitura dos sambas do primeiro disco digna de ser aplaudida de pé.

7. Você Bem Sabe: Segunda parceira com Nelson Motta, a faixa é semelhante à Vida Real no que se refere ao estilo, sem muito espaço para experimentalismo. Mas alma de Djavan está lá no violão perfeitamente encaixada no piano de Nelson. A introdução e passagem da música é digna de nota: O arranjo é belíssimo e a melodia, maestral.

8. Mal de Mim: Seguindo o princípio de Cigano (princípio este que será potencializado no Djavan mais moderno), Mal de Mim é um soft/smooth jazz sofisticadíssimo manejado no inseparável violão de Djavan. Porém, criado numa ambientação mais reclusa, dando pouca liberdade a uma potencial interpretação que não a da nostalgia e da suavidade exalante original da canção. Envolto numa aura de solidão, porém doçura, a lírica possui métrica e arranjos atípicos para um jazz, assemelhando-se bem mais com as composições de "souls nordestinas" mais brandas dos álbuns anteriores.

9. Mil Vezes: De repente, ao fim de Oceano, algo muito estranho acontece. Mil Vezes, embora seja erguida em meio à doçura e sofisticação do álbum inteiro, é de longe bem mais experimental que as faixas anteriores. Sendo uma transição entre o que ouvimos em Não É Azul, Mas É Mar e o que ouviremos em Coisa de Acender (1992), Mil Vezes já começa diferente: Uma intro de bateria e violão aparentemente desconexos com o baixo se estendem por um pouco mais de meio minuto dando lugar a um groove funk que destoa de Oceano como um todo. Em seguida, o arranjo garante boas surpresas que dão um colorido à música muito típico do próximo álbum, provavelmente experimentando o novo conceito que será lançado em Coisa de Acender. Djavan não conseguiu manter-se comportado o álbum inteiro pelo que parece. Ainda bem.

A última faixa de Oceano parece anteceder a revolução de Coisa de Acender, álbum dos mais diversificados depois de Seduzir. Então, se preparem, pois a próxima postagem tratará do criativo Djavan experimental que, aliás, já estávamos com saudades.

sábado, 24 de janeiro de 2015

Homenagem musical: Djavan - Lilás

Chegamos ao sexto álbum de Djavan e a quinta postagem com análises dos álbuns em homenagem aos 66 anos de Djavan. Nesta postagem exploraremos o mundo pitoresco e abstrato de Lilás. Lançado em 1984, Lilás conta com nove faixas invés de 10, todas composições próprias de Djavan. Ainda sob a guarda da Sony Music (ou CBS), Djavan avança e aprimora o conceito lançado em 1982 no álbum Luz.

Contando com faixas, em sua maioria, alegres, assim como em Luz, Lilás poderia ser radiofônica por natureza como seu antecessor. Porém não é exatamente isso que o álbum explora. Diferente de Luz que colocou cinco de suas faixas como hits do cantor e compositor alagoano, Lilás o fez apenas com duas: Esquinas e Lilás, do disco homônimo.


A beleza e a graça de Lilás está na exploração do som em sua forma mais suingada possível e da fonética de um aparente absurdo. Parece que o disco é repleto de cores, desta vez soando mais como uma pintura expressionista abstrata do que surrealista-impressionista. Agora Djavan parece experimentar o Vangoghismo musical criando ambientes coloridos de forma completamente abstrata, desta vez, porém, através de pinceladas inteiras, ao invés de pontilhados. As frases e palavras são espalhadas como temas dentro das canções, formando um ambiente próprio que é difícil de não se emaravilhar. Na minha opinião, o melhor disco da carreira depois de Luz.

1. Lilás: "Amanhã outro dia, lua sai, ventania, abraça uma nuvem que passa no ar, beija, brinca e deixa passar". O verso inicial de Lilás é basicamente um quadro abstrato móvel, quase onírico, que mergulha o ouvinte num mar de sons amontoados. Erguido sobre o new wave e funk groove dos anos 80, sintetizador, baixo funk e bateria, o pop de Djavan é enfeitado pelas firulas de arranjos típicos da época e talvez tenha sido por esse motivo que alcançou como hit o grande público brasileiro e estrangeiro.

2. Infinito: Segunda faixa funkeada do disco, Infinito segue o princípio da harmonia simples e melodia suingada. A equipe americana que montou o arranjo instrumental de Lilás desta vez investe pesado no baixo e na guitarra, entregando um dos solos mais bonitos do disco. Sem pretensão de entregar uma faixa complexa, Djavan pinta um quadro em tons de roxo durante boa parte da música. Em seguida, floreia um pré-refrão um pouco mais complicado para, enfim, desaguar num refrão que brinca com os compassos. Djavan avisa: "Te vejo lá no luar, te espero lá do sol" no arranjo único que o sintetizador finaliza com muita beleza.

3. Esquinas: Segundo sucesso radiofônico de Lilás, esquinas é criado sobre um ambiente cristalino e cavernoso, como se encerrasse o ouvinte numa gruta. Djavan brinca com as notas altas e baixas através do pad de timbre fragmentado e do saxofone que entra solando de supetão próximo ao final, dando a dramaticidade necessária, mas não exagerada, que a poética lírica carrega.          

4. Transe: A partir desta faixa, o disco Lilás adquire um novo conceito abstrato de forma melhor explorada que em Luz. Transe é tudo, menos óbvio. A lírica absurda se junta com a tinta harmônica e o arranjo ansioso para formar um mundo completamente novo em que notas dissonantes e sétimas se unem num só corpo coeso. A música é uma pérola perdida em Lilás que foi resgatada por Djavan em sua turnê Ária, o que fez com que aqueles "hitfans" ficassem atordoados ao vivo.


5. Obi: Faixa mais abstrata do disco, Obi é uma de suas mais belas composições de samba. Parecendo feita especialmente para estrangeiros cantarem, Obi não necessita de um significado especial para demonstrar toda sua emoção interpretativa. Djavan instala o conceito do abstratismo de forma coerente: o que está ali pode não fazer sentido, mas o que você sente em relação àquilo, a impressão que fica, é o que realmente importa. Obi faz Açaí parecer um texto jornalístico de tão grande seu abstratismo e colorido sonoro.

6. Miragem: Continuando na linha do abstratismo lírico e musical, Miragem demonstra que Djavan é um verdadeiro monstro no que diz respeito a passar mensagens emocionais na forma de sons. Miragem é uma das melhores, se não, a melhor faixa do álbum, com muita honra. Garantia do prêmio de harmonia mais complexa dentre muitas composições de Djavan até então, Miragem é uma pintura de muitas cores dispersas, dos mais diferentes espectros, derivadas de um arranjo intrincado, evolutivo e concatenado com cada palavra. Simplesmente magistral e impressionante.

7. Íris: Faixa psicodélica, Íris apresenta características de arranjo e harmonia muito semelhantes a Transe, porém é bem mais suingada. Íris utiliza não apenas do jogo entre fonemas semelhantes para a criação do arcabouço harmônico, mas também palavras inteiras. A faixa é construída basicamente de baixo, sintetizador e um saxofone que faz sua aparição apenas próximo ao final, assim como em Esquinas.

8. Canto da Lira: A mistura do baião com o groove é uma experimentação que músico brasileiro nenhum no Brasil, além de Djavan, tinha o direito de fazer. Isso não bastou para tornar esta faixa uma experimentação completa: A segunda parte da música é completamente diferente do resto, possuindo um ritmo arrastado de algo entre reggae e bolero. A mistura fica tão estranha que a faixa pode ser digna da alcunha de mais experimental e abstrata do álbum. A lírica psicodélica é um show à parte: misturando o abstrato com o absurdo, Canto da Lira fala de algo que provavelmente só faz sentido na mente do seu criador.

9. Liberdade: A faixa final é ambientada numa redoma de sons ecoados, típicos da balada dos anos oitenta. O sintetizador e a bateria fazem todo o trabalho de trazer o psicodelismo à faixa de forma a tornar parte de um mundo onírico completamente vago e fugaz, sem limites propriamente estabelecidos. Liberdade é todo o trabalho de juntar o sereno com o histrionismo vocal de Djavan, concluindo a faixa com uma serenidade quase silenciosa e que dá fim à obra mais abstrata do artista até hoje.

A próxima postagem será sobre o álbum mais comportado e sensível que Djavan fez desde seu primeiro, Oceano (1989), originalmente de nome apenas "Djavan".